Espelho da vida

Espelho da vida

Crônica de um homem sensível

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 Luís Gomes é meu amigo. Meu irmão. Há 35 anos. Converso com ele todos os dias. Não me imagino sem esse contato cotidiano que me alimenta de arte, afetividade e humor. Formado em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, leitor dos grandes pensadores, apaixonado por Elias Canetti, ex-estudante de história na PUCRS, onde nos conhecemos, editor da Sulina, ele tem uma sensibilidade extraordinária e uma cultura exuberante. Vê filmes como quem toma água ou um bom binho. Para se distrair, lê uma página de Gadamer ou relê Paul Auster. Com a sua personalidade singular, não deixa ninguém indiferente. Em tempos de coronavírus, o texto que segue, escrito por ele, me emocionou pela densidade, pela suave melancolia, pela poética e pelo humanismo.

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“Aquilo que chamamos de fato pode muito bem ser um véu tecido pela linguagem para ocultar da mente a realidade”.

George Steiner

 

Ver o sol refletido na água é poder ver tudo o que há no abismo entre as linguagens, a melhor forma de não perder a tradição da fala e o poder da leitura após observarmos que o céu não tem dono, apenas espectadores. Existem os que frequentam a vida, assim como os que vivem a vida intensamente. Os dois tipos são apenas espectadores da cosmológica definição poética existencial sobre a vida. A prova é estar vivo. De repente os conceitos, como um jogo de cartas, passam de mão em mão, olhos em olhos, pensamentos, sentidos, tudo no mesmo tempo. A sincronia é atonal, porém o som é único, o estar vivo.

O sintomático está diante da certeza de que o fim é um céu infinito, também podemos pensar que o fim esbarra logo ali, na primeira esquina, no primeiro susto, na primeira ação, na violência cometida pelos que querem ter o controle de tudo, dos que usam as forças espirituais para cercarem-se da certeza que só a força é que pode mantê-los. Estamos diante disso. A verdade toma forma diversa, atribuído o conhecimento histórico ao ato de compreensão, é uma maneira de usar bem ou mal na mesma proporção de viver longe de tudo o que está no acontecido. Diante do absoluto do medo, da linguagem mais abstrata ao mais tosco e vil imperativo que é dar sentido ao mal, como sendo ele a única possibilidade de salvar vidas em nome de um só desejo, tal qual o conquistador enlouquecido por sua falta de sensibilidade se orgulha de sua razão do bem melhor, que é nada mais que uma seletiva forma de dizer o que serve, o que deve ser excluído.

O exílio está dentro de todos, só que para alguns estar perdido na própria falta de conseguir o controle é como estar sem a dimensão do tempo, sem poder olhar o que nunca conseguiu ver. De fato estávamos no excesso do cansaço, o esgotamento era sintoma de erro, o sujeito estava suprimido por sua luta diária de chegar cada vez mais longe. Para nada. Agora mesmo disse para meu melhor interlocutor que a mim basta o silêncio, ouvir a natureza, ao fundo uma música e águas que possam espelhar o céu. A infinitude morre na distopia, li ou pensei. É o que não quero.

 


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