Essas palavras iniciais de um livro

Essas palavras iniciais de um livro

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Essas palavras

 

Será possível ver alguém mudando com o tempo através dos seus escritos? O que se vê? Abri meu romance “Fronteiras” com uma espécie de reconhecimento do caos e da debandada: “Imundou. Sujos, os homens tomaram rumo. Mundo sem porteira. Foram-se pelas estradas que desterram. Porcos castrados no chão batido. Comecei a rir. O sol caía por trás dos eucaliptos, rasgando o potreiro com os últimos golpes brandos das sombras das árvores, e uma aragem incomum para a época, metade de março, embalava os caraguatás na lomba do Alto Grande. A polvadeira levantada pelo trote rasgado dos cavalos engolia seres, barrancos, casas, coxilhas, palavras... castelhanos. Cada sopro desencadeava uma nuvem de cascos. E tome pó e dê-lhe patas”. O neologismo inicial sugeria um olhar um tanto cético aos 40 anos de idade.

Muitos anos depois, comecei meu livro “Solo” com uma constatação de imobilidade: “Durante muito tempo eu me deitei cedo. Para ver televisão confortavelmente. Isso não me atrapalhava a vida em nada e eu buscava o tempo perdido lendo Marcel Proust, Raymond Chandler e as tirinhas do Garfield. Quase sempre na ordem inversa. Nos últimos meses, contudo, alguma coisa mudou. Alice caiu fora. Agora, passo os meus dias entre o sofá e a cama sempre com a tevê ligada. Troquei até a atitude musical contundente de Franz Ferdinand por Roberto Carlos e Nélson Gonçalves. Não se trata de uma desistência ou de uma capitulação estética. Apenas de um retiro. Um recuo estratégico. Tenho ainda muito o que ver na vida: a programação da TV é interminável e variada”. Até que ponto o autor vaza nos seus personagens? Depende.

Nos meus livros, muito pouco, apesar de alguns acreditarem que escrevo autobiografias romanceadas. Iniciei “Um escritor no fim do mundo, viagem com Michel Houellebecq à Patagônia” com uma citação irônica: Eu amo as viagens e as memórias fugitivas. Mas odeio os viajantes e os seus relatos. Especialmente quando eles são tristes e longos. Não sou o primeiro a pensar assim. Nem o último a cair em contradição. Talvez eu já tenha escrito isso antes. Adoro os pastiches e costumo me repetir. Entre mim e o meu célebre antecessor nesse tipo de frase, cuja sombra se eleva sobre o meu passado como uma árvore que perdeu as folhas, só há diferenças. Não me refiro, obviamente, ao que pode pensar qualquer um, vulgarmente falando, a respeito dos nossos percursos desiguais e das nossas estaturas incomparáveis. Remeto-me a coisas ainda mais simples. Não levei muito tempo para tomar a decisão de contar a viagem que fizemos – Cláudia, minha mulher, e eu, no final de 2007 – com o escritor francês, ganhador do prestigioso Prêmio Goncourt 2010, Michel Houellebecq à Patagônia. Bastou uma semana para que eu estivesse determinado a fazê-lo. Talvez até menos”. Que coisa!

O mais insuportável das viagens, depois dos aeroportos, das malas e das horas encarcerado em aviões, principalmente nas classes econômicas, são os relatos. No fundo, cada viagem, mesmo na era do turismo de massa, quando todas se parecem e seguem os mesmos percursos, é única e só faz sentido para quem viajou. Toda viagem é inenarrável e subjetiva. Prova disso é que quase todo mundo foge de quem quer contar suas andanças. Outra coisa que nunca soube fazer é dar dicas. Houve um tempo em que era razoável indicar hotéis. Hoje, cada pessoa se abastece de informações mais precisas na internet.

Os viajantes costumam fazer guerras de conhecimento. Quem viajou mais, quem esteve em tal lugar, quem comeu tal coisa, quem viu isto ou aquilo. Eu esqueço. Quanta coisa linda já vi e esqueci? O mais engraçado é uso de uma forma de expressão comum e categórica:

– Sabe o Caravelas?

– Que caravelas?

– O restaurante.

– Acho que não...

– Serve o melhor bacalhau de Lisboa.

Como é possível saber disso? Como comparar? Dificilmente um viajante faz frases ponderadas. Parece que isso quebra o encanto:

– Comi, no Caravelas, um bacalhau que me satisfez.

Na juventude, eu viajava mesmo sem sair de casa. Na meia idade, ficava em casa mesmo quando viajava. Hoje, penso nas viagens e nos viajantes como estudos de caso. Que seres estranhos! Há tanto país que não conhecerão! Mesmo que conheçam todos, o que isso significará? Fico espantado com as pessoas que largam tudo, compram um barco e partem em viagem permanente. O que buscam? O que perdem? De que fogem? Da rotina? Não se entediam com o eterno deslocamento? O que sonham?

Terminei meu livro “Antes do túnel, junto às palmeiras (uma história pessoal do Bom Fim)” com uma declaração de amor: “Já que o clima era francamente piegas, decidi cometer o meu ato mais radical e patético em quase trinta anos de Bom Fim. Atravessei a Osvaldo Aranha até o canteiro do meio das duas pistas, olhei para os dois lados, envergonhado por antecipação e, emocionado como um ecologista diletante, abracei uma palmeira real, melhor, vale a precisão, uma das 99 palmeiras-da-califórnia (washingtonia robusta) um dia plantadas em paralelo aos 49 hectares do Parque Farroupilha, a Redenção. Passou um gaiato e, completamente indiferente à espiritualidade do meu abraço mais fraterno e sentido, gritou como um bárbaro:

– Aí, hein, abraçado no tronco!

Bom Fim, Bom Fim, Berlim, Pequim, dia sim, dia sim... “

 

 

 

 

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