Estado e pandemia

Estado e pandemia

Quando todos pedem ajuda pública

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      Durante anos a direita brasileira, negando ser direita, repetiu a ladainha do “Estado mínimo”. Acossada pelas críticas, adotou um eufemismo: “Estado necessário”. Em lugar de morrer, vir a óbito ou falecer. A ideia era simples e fácil de ser disseminada: privatizar ao máximo por todos os meios: venda, concessão, terceirização, contratualização e outros termos que dizem o mesmo com outras letras por tempo determinado. Aí veio o coronavírus e infectou tudo. Sem uma solução disponível nas prateleiras do mercado, só restou uma coisa a fazer: pedir ajuda ao Estado, o mesmo que se queria liquidar. Em consequência, o ministro ultraliberal Paulo Guedes, último moicano da velha Escola de Chicago, perdeu a voz. Não se ouve o que ele diz.

      Norberto Bobbio definiu o Estado contemporâneo como “capitalismo organizado”. No caso brasileiro, capitalismo burocratizado. Mas, por linhas tortas, de acordo com as épocas, tábua de salvação. Getúlio Vargas, durante a ditadura do Estado Novo, garantiu uma legislação trabalhista que ficou entalada na goela dos donos do capital. Nos últimos tempos, a chamada Era Vargas passou a ser desmontada sob argumentação de que era anacrônica, ultrapassada, antimoderna e ineficiente. Os poucos traços de um Estado do Bem-Estar Social construídos no século XX também entraram na mira. A ordem era desestatizar, deixar tudo na mão invisível do mercado e faturar.

      O vírus estragou a farra. Hoje, quem não recebe ajuda do Estado reclama amargamente a sua presença. Para Bobbio, o “Estado contemporâneo baseia-se em quatro pilares: estrutura formal do sistema jurídico, estrutura material do sistema jurídico, estrutura social do sistema jurídico e estrutura política do sistema jurídico. Trocando em miúdos, com palavras do célebre intelectual italiano, a mesma lei para todos, justiça imparcial, liberdade de concorrência, trato da questão social, separação e distribuição do poder. Temos um paradoxo? Ou uma contradição? Se todos clamam por ajuda do Estado, sepultando a ideologia do Estado mínimo, nem todos aceitam os demais fundamentos da estrutura estatal moderna. O julgamento no Rio de Janeiro que deu foro privilegiado a Flávio Bolsonaro, contrariando definição do STF, pareceu desconhecer o princípio da imparcialidade e da impessoalidade.

      A dificuldade revelada pelo executivo federal em aceitar a autonomia do legislativo e do judiciário também revela algo de bizarro no reino das jabuticabas. Com o legislativo sempre se pode negociar. Afinal, o Centrão existe para isso. O que fazer, porém, com o STF? Depois de negar o Estado na economia, em tempos de pandemia precisa-se de um Estado pagador, mas se resiste a um Estado politicamente liberal. Será que teremos um Estado máximo em economia e mínimo em separação de poderes? Bem pensado, isso já existiu. Foi o Brasil de 1964, que chegou a aumentar o número de ministros do STF de 11 para 16, aposentou três magistrados na marra e levou dois a saírem por conta própria. Um, quando a censura foi considerada constitucional, pendurou a toga diante dos colegas e foi cuidar da sua família.


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