Este ano eu morri, mas ano que vem eu não morro

Este ano eu morri, mas ano que vem eu não morro

Refrão por Ano Novo

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      Com licença, Belchior, que vou adaptar: neste ano eu morri, mas ano que vem eu não morro. Espero. Neste ano eu morri de medo, de raiva e de perplexidade. Morri quando o presidente da República disse que a Covid era só uma gripezinha e ela já estava fazendo estragos no meu pulmão. Morri quando tudo fechou e precisamos aprender a viver em reclusão. Morri a cada vez que a ciência foi negada por ideologia e ignorância. Morri de tento ver gente morrer nos números implacáveis do avanço diário da doença. Morri a cada silêncio imposto à racionalidade.

      “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro”, mas ano que vem eu não morro. Tomara. Morri no começo do ano de pavor da doença, no meio, de tantas sequelas, no fim, de espanto. Neste caso, morri mesmo foi de rir ao ouvir o presidente dizer a respeito da vacina contra o coronavírus: “Se você virar jacaré, o problema é seu”. Uau! Fui às lágrimas com o complemento: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver isso". Depois de morto, exclamei: “Fala sério!” Neste ano eu morri, mas ano que vem eu não morro. Se puder. Se der.

“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte”, porque apesar de nem tão novo, estou vivo, se não tão forte, salvo e com meu velho porte, que se não é muito, tem me servido ao longo da vida. Neste ano eu morri esperando a cura do remédio errado, mas ano que vem eu não morro se for vacinado e fizer tudo certo, inclusive ter a sorte de não ser reinfectado por uma mutação do vírus indomado. Neste ano eu morri de vergonha, de indignação e de tristeza. Morri asfixiado com George Floyd e João Alberto. Morri de humilhação com a vítima de violência doméstica que ouviu do juiz que ninguém agride de graça. Morri de nojo junto com a deputado vítima de assédio sexual do colega.

Neste ano eu morri, mas ano que vem eu não morro. Se depender de mim. Morri de constrangimento quando vi na televisão as praias cheias com a curva de contágios e mortes subindo. Morri quando acordei no meio da noite e ouvi o silêncio sinistro do ano da pandemia. Morri quando vi as imagens dos pacientes infectados convivendo com um cadáver ao longo de horas por falta de quem removesse o morto. Morri quando politizaram a vacina, a minha, a tua, a dos comunistas, a do mundo livre, a nossa. Morri a cada mentira oficial, a cada discurso diversionista, a cada fake news disseminada, a cada preconceito atualizado, a cada coice recebido. Ano que vem eu não morro. Hei de ser resiliente e forte.

Se neste ano eu morri, ano que vem eu viverei nas asas da borboleta, no sorriso das crianças, na festa da democracia, no respeito aos direitos humanos, no combate ao racismo e à homofobia, na luta pela preservação da natureza, no apoio à diminuição das desigualdades que asfixiam e matam, nas sonatas de Beethoven, nos raps do Emicida, nas metáforas do velho Chico Buarque, nas lives do Caetano Veloso e nas páginas que escrevo, como as de Acordei negro, com paixão renovada pela literatura. Este ano eu morri, mas ano que vem eu morrerei de viver.


 


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