Eternos namorados em Paris

Eternos namorados em Paris

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Não havia mais ninguém por lá. Restava um cara atrasado para cair fora. Nós nos fizemos fotografar ao lado dele e da sua barraca já meio banguela. Depois, atravessamos a Praça da República deserta, sob a luz glauca da manhã tristonha, em busca da entrada do metrô. A chuva deixava o piso lustrado como um salão de certos prédios públicos. Tudo reluzia. Inclusive nós. Apesar da proximidade da primavera, fazia frio. Pendurando numa árvore retorcida, um cartaz lembrava os acontecimentos dos últimos dias: Nuit Debout. O tradicional símbolo anarquista separava as duas palavras. Solene.

No saguão da estação do metrô, dois homens discutiam. O mais velho estava em posição de ataque. A briga era iminente. Não foi possível saber pelo que discutiam. O velhote, cada vez mais irritado, repetia, com os punhos armados para uma ofensiva que, apesar do barulho, não aconteceria, uma espécie de refrão enigmático e grave:

– A gente corta a garganta.

O outro esperava sem se alterar muito, mas com um riso sórdido (há pessoas que não sorriem; cristalizam uma crispação hedionda):

– Corta?

– Dos brasileiros, a gente corta a garganta.

Mais tarde, Dominique ligou. Parecia meio sonolento. Não usou o seu termo preferido para lançar os nossos cumprimentos de rotina.

Salaud!

Connard!

De cara, perguntou, como se não pudesse esperar pela resposta, premido por alguma urgência que não teve tempo ou desejo de revelar:

– Então?

– Não havia mais ninguém por lá. Restava um cara atrasado...

Ele riu. Mas era um riso lacônico. Muitas coisas aconteceram depois disso. No subúrbio, em Meudon, um jovem falando francês com sotaque de Portugal, encostado numa parede sob a chuva fina, disse:

– A polícia.

– Onde?

– Aí. A civil.

Seguimos juntos no ônibus até a estação de metrô Pont de Sèvres. Trocamos algumas frases no caminho. Ele era de um vilarejo não muito longe da cidade do Porto. Fazia cinco anos que não voltava à terrinha. Não sentia saudades. Só tédio. Por que saíra de casa?

– Não havia mais ninguém por lá. Restava um cara atrasado...

– Como?

– Restava um cara atrasado para cair fora.

– Hein?

– Era eu.

Passamos uma semana em Paris. Uma semana em 25 anos seguidos. Sem faltar um só. Quase seis anos, no total, morando num recanto de Montparnasse. Sempre a mesma surpresa. Chovia outra vez. Um recorde para o final de maio. Saímos do metrô Porte d’Orléans. Junto ao Périphérique, o cinturão rodoviário da capital. Ambiente pesado. Grandes prédios comerciais sob o cinza chumbado. Sensação melancólica de solidão robusta na opulência da metrópole. Os simpáticos ônibus verdinhos parisienses nos seus terminais. A cidade parecendo um imenso mausoléu de vidro escuro salpicada de pontinhos verdes.

Entramos no prédio da grande editora Seuil, uma das maiores da França, adquirida pelo Grupo La Martinière. Alexandre nos recebeu.

– Há quanto tempo estão aqui?

– Cinco anos.

– Eu me lembro de quando era na rue Jacob, em Saint-Germain...

– Tempos de ouro do livro...

Voltamos soturnos para a chuva. Sem que eu quisesse, me veio a imagem de uma livraria vazia num dia de chuva fina. E uma voz triste:

– Não havia mais ninguém por lá. Restava um cara atrasado...

A distopia passou. Homens falavam alto na plataforma de piso negro luzido do metrô. Alto para franceses, o que é sempre mais baixo do que o mais baixo que podemos conseguir. Um minuto de espera. Embarcamos com eles. O trem foi engolido pelo buraco escuro do túnel.

– A gente bloqueia tudo – disse o homem que falava mais vezes.

– Quando? – perguntaram os outros ao mesmo tempo.

– Se o governo não ceder.

– Quem vai dar a ordem?

– A CGT.

– Vai funcionar?

– O código do trabalho é sagrado. Eu disse, sagrado.

Ressurgimos no Quartier Latin. Chovia sempre. Suavemente. Paris era um burburinho. E uma meleca. Encontramos Michel. Ele pergunta.

– Foram ver o pessoal acampado na Praça da República?

– Não havia mais ninguém por lá. Restava um cara atrasado...

– Atrasado?

– Para cair fora.

Ficamos em silêncio vendo a chuva fina cair.

Nas mesas, o tinto do vinho dava um tom sanguíneo a cada gesto. Como se fosse um quadro.

Éramos dois eternos namorados, Cláudia e eu, há 25 anos trilhando as ruas de Paris.

 

 

 

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