Exercícios de anacronismo

Exercícios de anacronismo

Conto sobre o amor à poesia do Rio Grande do Sul

publicidade

 

      Conta-se que João Fidélis queria ser um homem do seu tempo, o que exige definições complexas de temporalidade e espaço. Mas a sua época, segundo os que lhe conheceram melhor ou se interessam por ele, era outra. Sabe-se que o conceito de tempo varia com o próprio tempo, fazendo do passado um eterno prisioneiro do presente. Capturar o tempo talvez seja a mais constante utopia da humanidade, o que se vê, por exemplo, em ruínas das culturas pré-colombianas no México. A invenção de um instrumento para medir o tempo não deixa de configurar uma impossibilidade lógica: como marcar a passagem de algo imóvel? O paradoxo da busca pela captura do tempo está em que os homens caem prisioneiros das suas ilusões temporais apresentadas como definitivas.

      Embora isso nunca tenha ficado provado, conta-se que Fidélis esteve em Chichen Itza, de onde teria voltado transfigurado, termo que podia significar iluminado, diferente, bizarro ou feliz. Conta-se tanta coisa quando se tem tempo ou quando se quer iludir o tempo fazendo de conta que ele flui justamente quando está mais do que nunca congelado, caso comprovado por muitos do tempo do relógio-ponto.

– Algo se move, mas será o tempo? – perguntava Fidelis.

Ele acreditava que o tempo da alma começa antes das horas marcadas pelos relógios. Prometia desenvolver essa ideia quando tivesse tempo e mais clareza sobre o assunto, especialmente sobre a noção de alma. Não raro, mostrava-se atormentado por sua concepção, que, no entanto, lhe parecia libertadora e essencial para uma vida feliz. Sem ela, confessou num dia de desalento, a arquitetura do seu pensamento desabaria num instante. Fumante, media o tempo pessoal pelo espaço necessário ao consumo de cada cigarro (22 por dia), o que lhe trazia cada vez mais problemas na medida em que sua noção de tempo não era a mesma do chefe. Aquilo que ele via como tempo de reflexão, o superior considerava como tempo perdido ou desviado da produção. Cabe salientar aqui que nesse tempo ainda se toleravam as interrupções do trabalho, em certos lugares, para relaxamento dos funcionários.

Homem simples, Fidélis trabalhava num escritório de contabilidade. Tinha, com grande orgulho, direito a uma mesa com gaveteiro onde guardava um livro que considerava precioso: “Antologia da estância da poesia crioula”. Não era uma obra antiga, mas nela, em releituras diárias, ele encontrava sabores e até perfumes de uma infância nem sequer procurada. Nunca mais pusera os pés na sua terra natal. Conta-se que era um homem modesto e afável, dedicado a estudar como diletante a singularidade da poética sul-rio-grandense, que não chamava de gaúcha para bem separá-la da poética uruguaia e argentina.

      A sua tese, sustentada a qualquer momento, especialmente no intervalo do café ou nas pausas para fumar, era que a poesia sul-rio-grandense sempre foi menos nostálgica do que as dos vizinhos platinos. Não lhe interessava a apresentação de provas do seu estudo comparativo. Não, ao menos, naquele tempo. Talvez fizesse isso no futuro, tempo do qual não se ocupava, atarefado que estava em ligar presente e passado. O máximo que avançava para os mais curiosos eram estocadas sobre nomes que lhe viam a mente como ilustrações:

– É só ler o Ascasubi ou todos os que vieram depois dele.

Conta-se que se embriagava com a certeza de estar no caminho certo, mas que não temia se desdizer como nesta fala repetida:

– Não há nostalgia em Martín Fierro. É outra coisa.

Depois de alguns anos, chegou à fórmula da sua vida:

– A poesia sul-rio-grandense é um maravilhoso – talvez o mais maravilhoso de todos os já conhecidos – exercício de anacronismo.

      Conta-se que ele, com os olhos negros brilhando, sempre se antecipava aos interlocutores para explicar que falava de anacronismo mesmo e não de nostalgia. Didaticamente, com sua voz grave e compassada, afirmava que a nostalgia carrega uma vontade de retorno ao passado impossível e até perigosa, angustiante, patológica. Já o anacronismo buscaria trazer o passado, ou parte dele, de volta, arejando o presente com valores e práticas sempre necessários e saudáveis. O anacronismo, argumentava, poderia ajudar a recuperar um tempo natural para a vida urbana marcada pelo tempo artificial.

      Quando João Fidélis morreu, de um infarto fulminante, um amigo dele, cujo nome não foi pronunciado, fez um rápido discurso de adeus:

– Partiu um homem bom, desses que se perderam no tempo e nem existem mais, que passou a vida fazendo exercícios de anacronismo.

      Quiseram colocar na sua lápide uma estrofe de Alcides Maya: “Este prosador é Alcides [com o nome dele no lugar do outro]/Que nos campos celestiais/Conta aos outros imortais/Da sua satisfação/Com a cultura do seu rincão/Que lhe traz tanta saudade/Vendo sua mocidade/Cultuar a tradição”. Alguém disse que isso era nostalgia. Depois de muitas discussões, escolheram uma estrofe de Oliveira Silveira: “Sou o trabalho e a luta/suor e sangue de quem/nas entranhas desta terra/nutre raízes também”. Ele queria mais tempo para matear.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895