Fantasmas lerdos e Doutor Honoris Causa

Fantasmas lerdos e Doutor Honoris Causa

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Fantasmas lerdos

 

      Contei em palestras recentes, na Escola de Jovens Adultos Leocádia Prestes, na Cohab Cavalhada, em Porto Alegre, em Rio Grande, num encontro com professores e funcionários públicos, e em Restinga Seca, como patrono da Feira do Livro, uma história que me aconteceu em Palomas quando eu era criança. Eu tinha de passar a cavalo, trazendo outro a cabresto, num final de tarde, na frente do cemitério. Estava morto de medo. Quanto avistei os túmulos, vi um vulto branco oscilando, quase dançando, na frente do campo santo. Empaquei. Voltei. Não tinha saída. Eu avançava para casa ou a noite me pegava na estrada. Quase me mijei de medo. O vulto não parava.

Retrocedi até a casa do Juca, que tinha um bolicho na beira da BR-158, ao pé do Cerro de Palomas. Ele não se alarmou. Riu. Um riso tranquilo. Tomou mais um mate. Juca era um contador de histórias bonachão. Cada vez que eu passava ali, ele me mandava levar recados para o meu pai, cabo da Brigada Militar, destacado em Palomas. Uma vez, me fez sair a galope para avisar que tinha havido uma chacina nas imediações, perto do mato, mais de dez mortos. Desembuchei tudo. Meu pai começou a rir. Fiquei confuso. Depois, perdi a compostura.

– Ele é um mentiroso.

– Claro que não, guri. É um grande contador de causos.

Não entendi. Juca disse que não podia me acompanhar para me salvar do fantasma nem me dar pouso. Ficou sério e sussurrou:

– É a tua hora de virar homem. Faz a tua escolha.

Muitas vezes depois, na Europa ou no Brasil, pensei na frase do Juca. Naquele momento, não havia escolha. Era passar ou passar. Se ficasse, o que pensariam em casa? Teriam de sair à minha procura. Ficariam preocupados. Se tentasse passar, teria de confrontar o fantasma. Só podia ser um. Era alto, vestido de branco e oscilava. Cabia perfeitamente na minha definição de fantasma. Eu andava com a cabeça cheia de histórias e de lendas. Depois de um longo silêncio, certamente com pena de mim, guri franzino e assombrado, Juca decidiu me ajudar. Deu uma saída e voltou com uma vara de marmelo. Sorriu:

– Toma.

– Pra quê?

– Passa a vara no matungo quando chegar no cemitério.

– Vai adiantar?

– Vai.

– Como?

– Fantasmas são lerdos.

Quem diria que, 45 anos depois de ter fugido de um fantasma lerdo, eu estaria, pela terceira vez, fazendo o discurso de saudação de um Doutor Honoris Causa. Será hoje, às 10h30, na PUCRS, sob a presidência do vic-reitor Evilázio Teixeira. Depois de ter saudado Edgar Morin e Michel Maffesoli, farei o laudatio do filósofo Gilles Lipovetsky. Num momento em que a razão e tolerância precisam ser saudadas, nossa universidade cumpre seu papel. O saber não tem medo.

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