Fernanda, o general e o STF

Fernanda, o general e o STF

O Brasil no seu labirinto

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O STF começa a julgar hoje a questão da prisão depois da segunda instância.

O inciso LVII da Constituição Federal é mais cristalino do que um diamante: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

O artigo 283 do Código de Processo Penal é ainda mais transparente:i "Nnguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva".

Tudo mais é inconstitucional e ilegal.

É fake news dizer que 191 mil presos serão libertadores com o respeito à Constituição. Não passam de 4.895. E muitos poderão continuar presos em função de cautelas. O artigo 312 do Código de Processo Penal prevê: "A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria".

O STF deve mudar o seu entendimento não para favorecer corruptos, não para libertar o ex-presidente Lula, mas para respeitar a Constituição Federal de 1988.

O general Villas-Boas, mais uma vez, tenta intimidar a Suprema Corte. Ele tuitou ontem: "É preciso manter a energia que nos move em direção à paz social, sob pena de que o povo brasileiro venha a cair outra vez no desalento e na eventual convulsão social”.

Não há convulsão social em vista.

O STF não pode ser tutelado.

Eu penso nisso e penso no que se agigantam como a atriz Fernanda Montenegro, símbolo de resistência aos 90 anos.

Uma vida dedicada à arte. Teatro, novelas e filmes. Fernanda Montenegro completou 90 anos de idade ontem. No auge. Quem não a conhece? Pode haver glória maior do que alcançar nove décadas de existência sendo símbolo de resistência ao obscurantismo? Pode haver consagração mais nítida do que ser chamada de “sórdida” por um velhaco reacionário? Fernanda já teve mil faces, mas só uma cara. Um caráter. Carioca de nascimento, batizada Arlette Pinheiro da Silva Torres, adotou nome artístico e impôs-se com uma identidade incontestável.

      A “indústria cultural”, fábrica de entretenimento, busca que o espectador, o cliente, identifique-se com o produto oferecido. A arte trabalha para produzir choques na percepção do observador. Uma quer identificar nossos desejos para satisfazê-los sem contrariá-los. A outra, altiva, quer nos mostrar o que desconhecemos e, em princípio, talvez não possamos amar, pois nos arranca da letargia e do torpor. Fernanda Montenegro tem sabido entreter e despertar do conformismo. Às vezes, como todo mundo ou ninguém, eu penso em Fernanda Montenegro. Penso assim como quem se perde em vielas e veredas, andando pelo parque, distraindo-se com ideias aleatórias, refletindo a esmo. Eu penso nela e concluo que viver de arte e para a arte faz sentido.

      Nunca tive ídolos. Sou do tipo que se diverte desmontando mitos. Admiro, porém, a solidez dos que furam as barreiras do tempo e chegam às idades mais longevas iluminando caminhos e provocando polêmicas. Quando penso assim, fico grandiloquente, pomposo, capaz de escrever frases de fraque e cartola. Eu me vejo contracenando com Fernanda Montenegro. Faço o papel de um louco que se toma por um grande ator. Também me vejo escrevendo uma peça para ser interpretada por Fernanda. O argumento é simples: em Palomas, a extrema direita toma o poder. Textos de Molière são queimados em frente à escola. Por que Molière? É o que tem na biblioteca. Fernanda encarna uma bruxa. Ela ensina a magia das letras, das artes, das mensagens secretas, das entrelinhas.

      Acaba presa. Na cadeia, recita um monólogo. É tão contundente que resolvem soltá-la para não contaminar os colegas de cárcere. Quanto mais a combatem, mais ela cresce. Pensam em expulsá-la. Desistem. O tiro sairia pela culatra. Desejam secretamente que ela morra, mas temem a comoção popular. Preferem que seja depois de uma sonhada reeleição. De raiva, só a chamam de “a velha”. Alguns, mais toscos, exaltam-se e dizem “a velha comunista”. Um mais radical dá o passo mais infame. Solta um “velha safada”. Muitos repetem “velha sórdida”. Ela brilha, inflama, encanta, é ovacionada, viraliza.

      Minha peça não é encenada. Vou para o exílio no Uruguai. Fico em Rivera mesmo. Passo os dias, como diria Leonel Brizola, na linha divisória, “costeando o alambrado”. Isso já é outra história. Aqui, agora, é a história de Fernanda Montenegro, representação pessoal do teatro numa época de crise da representação e da democracia. Nascida em 1929, ano da grande crise da bolsa de Nova York, ela certamente não se assusta. Enfrenta com serenidade. Isso enfurece seus detratores.

 

 


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