Fidelidade canina

Fidelidade canina

Contos do ano da pandemia

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      Esta é a história de Diego e Ana. Ou de Milu e Caniche? Não sei. Um autor nem sempre sabe o que vai contar. O leitor que decida. Pode começar, por exemplo, definindo o perfil dos nossos personagens. Como pode ser alguém, em 2020, com o nome de Diego? Jovem, cabelos muito curtos e espetados, esportivo, sarado, forte a ponto de não sentir frio em agosto? E Ana, com esse nome tão intemporal e recorrente: morena, sorridente, alta, linda e bem-humorada? Loura, com uma covinha no queixo, cabelos esvoaçantes e levemente ondeados, de saia plissada? Em breve, saberemos, inclusive sobre a saia plissada. Já Milu é uma cadelinha Pincher pretinha, com patas e focinho amarelados. Quanto ao Caniche, bem, digamos tudo sem demora: é um vira-lata caramelo.

      Nos tempos que correm, ou voam, não há tempo para “remplissage”, como diriam os franceses; em bom português, encheção de linguiça. O francês é uma língua tão chique que dá ar fashion até a uma tripa romana. Diego e Ana encontraram-se numa situação no limite da ilegalidade: numa pracinha, durante a bandeira vermelha da pandemia, levando seus bichinhos de estimação para um passeio. Quem tem cachorro sabe que os animais precisam sair e não se impressionam com as notícias. Eu não tenho cão. Mas também sei. Por experiência com vizinhos. Sendo assim, não julguemos precipitadamente Diego e Ana como negacionistas. De resto, Diego não é sarado, embora tenha músculos definidos. Ana é ruiva, sardenta, risonha e usa saias plissadas.

      Confesso que nada sabia de saias plissadas até me envolver com esta história. Não tinha noção se estava ou não na moda usar saia plissada vermelha. Foi uma descoberta. Diego, pelo que sei, também se surpreendeu com a saia plissada da moça. Nesta altura da narrativa, o leitor impaciente já se pergunta: qual a importância da saia ser plissada para o desfecho do que está sendo contado? Admito que não sei. Ao menos, para o desfecho. Porém, para o começo, posso dizer: Diego ficou de quatro pela menina sardenta de saia plissada vermelha. Um leitor menos implicante e mais objetivo deveria perguntar outra coisa: afinal, quem é de quem? Qual o cão de cada dono? Sacio logo a curiosidade para não me incomodar nas redes sociais: Caniche é de Ana. Milu, de Diego. Aposto que o leitor havia pensado o oposto por um recorte tradicional de gênero. Como dizia o cara, se enganou, meu bem.

      O cerco fechou. As saídas ficaram mais difíceis. Diego e Ana são pessoas que se preocupam com os outros e, informo prontamente, têm sólida formação moral e ética, embora, como a maioria, não saibam a diferença entre ética e moral, o que até agora não os impediu de agir corretamente. Não saem mais de casa, salvo por extrema necessidade e com máscaras e litros de álcool em gel. Confinados, descobriram-se nas redes sociais e decidiram colocar Milu e Caniche em contato em lives no instagram. Diego, a bem da verdade, pensou em lavar Milu à farmácia da esquina para ver se não encontravam Caniche por acaso. E Ana. As experiências virtuais de Milu e Caniche revelaram-se um fracasso. Se na pracinha não paravam de se cheirar, festejar e provocar, na tela simplesmente não se reconheceram. Diego insistiu para que tentassem mais. Foram dez lives em um mês sem qualquer resultado promissor.

      O tempo passou, a pandemia continuou e as lives também, em horas cada vez mais desconcertantes e enigmáticas. Melancólicas, engraçadas, até patéticas. Vez ou outra, roçavam os focinhos de Milu e Caniche nas telas dos computadores ou dos celulares numa tentativa desesperada de que se reconhecessem num beijo virtual apaixonado e saudoso. Um latido de Milu arrancou gritos de satisfação de Ana e Diego. Em uníssono. A indiferença de Caniche logo sepultou o entusiasmo. Uma reportagem na televisão liquidou essa esperança romântica: cães reconhecem seus donos pelo cheiro. As medidas restritivas foram intensificadas. A vida em encarceramento doméstico afetou a saúde mental dos confinados. Com medo de ser visto e denunciado, Diego começou a levar Milu para passear entre duas e cinco da manhã. Na solidão, pensava em Caniche.

      Numas dessas caminhadas avistou uma silhueta passeando de saia plissada com um vira-lata. O coração bateu forte. O celular marcava quatro e quinze. Madrugada espessa. Apressou o passo. O cachorrinho latiu. Era a voz de Caniche. Sentiu uma força cósmica uni-lo a Ana. Então, na solidão da pandemia, ela também passeava de madrugada? Quase correu, arrastando a pobre Milu, que se recusava a ter pressa na calmaria da noite dormente. Pegou-a nos braços e acelerou. Na volta da esquina, onde ainda se abrigam, sob a marquise, os moradores de rua, encontrou a moça. De costas, era Ana. De frente, era outra mulher, que se assustou. Milu ganiu. O vira-lata caramelo da desconhecida bocejou.

      Ao chegar em casa, depois de todos os procedimentos de higienização, Diego ligou para Ana. Ela estava acordada. Instintivamente beijaram-se pelas telas dos celulares, que ficaram embaçadas pelas respirações ofegantes, mas sem poder de contaminação.


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