Flores para quem ama a vida

Flores para quem ama a vida

Crônica sobre o cotidiano

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 Então eu fui colher flores do campo, pois, naquela época, homens colhiam flores do campo e não se limitavam a discutir política e futebol. Havia homens que dedicavam a vida à poesia e gente que admirava os poetas. Eu cultivava lembranças certo de que, no futuro, colheria o que tivesse plantado. Minha visão de mundo era, caso isso faça algum sentido, vegetal. Ninguém me entendia. Eu não me importava.

Hoje, caminho por entre os sulcos do que já fomos. Deixamos para trás os caules, as lagoas, pátios, roldanas, os arames, os poços, veredas, atalhos, badanas. Sobre o bocal dorme o balde, alheio à porta que ainda bate como se esperasse a mão para fechá-la. Deixamos atrás de nós as doces figueiras, a sombra amistosa das tardes, sob os cinamomos, uma terra de areia e de manhãs dispostas, mesas postas para a alegria, num tempo esperança, especialmente graças ao que não sabíamos. Bem longe, metálico, um cachorrinho late, como se fosse nosso pensamento, mas o silêncio recai no entorpecimento. Agora o oceano se esconde do sol e os rastros se perdem nas ondas. Certas lágrimas lavam nossas pegadas. Pela estrada ocre, casas e vales, vales e casas, animais no pasto, eucaliptos, florestas, videiras, olhos que mal dão para o gasto, além da sensação de que alguma coisa se apagou.

Quem éramos? O que fazíamos? Por onda andávamos? Quais eram os nossos cenários? Paredes caiadas, ou um girassol, cacos queimados de porcelana azul junto às rugas secas do grande umbu, vestígios que já fazem relembrar do esquecimento, daquilo que não fomos, nunca, eu e tu, embora tivéssemos a certeza de que o futuro nos pertencia. Enquanto assim nos afastamos do Sul, por um novo caminho de veias expostas, onde os bois exibem suas enormes panças, e os pássaros ensaiam esquisitas danças, uma criança com um vidro fosco espia do outro lado dos trilhos. Éramos terríveis e assustadores naqueles tempos? Através de uma janela sem brilho, a mãe ralha com o seu filho, um homem esculpe um boneco tosco, a tarde morna se espreguiça como um cão, compro um souvenir na loja de lembranças. Ouço Billie Holiday.

Ouço e concluo: minha alma tem rachaduras por onde passa o vento, essa forma sinuosa e sibilina de não se desconectar do vivido, meus olhos são fechaduras por onde espio esse passado que se materializa inteiro, tudo se esvai como um domingo. Faz sentido isso? Quem já não se sentiu vazio como um domingo que atire a primeira crítica. Quem já não se viu pleno como uma utopia que se manifeste. Minha alma tem fechaduras que me blindam contra o tempo. Só que muitos têm a chave. Meus olhos são rachaduras por onde se espreme o vento, como um navio que se afasta até o horizonte se apagar como uma vela.

Estava pensando alto sobre tudo isso enquanto imaginava campos floridos. Sou dado a esse tipo de devaneio no meio da tarde, durante uma reunião, em consultório médico, durante uma partida de futebol sem gols. Foi quando alguém me bateu no ombro disse com voz risonha:

– Falando sozinho amigo!

      Ajustei os fones nos ouvidos. Tocava Miles Davis.

 

 


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