França em convulsão

França em convulsão

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Na periferia

 

      As lembranças são como certas angústias das quais não se consegue saber a verdadeira causa. De repente, apresentam-se e tomam conta do nosso dia para bem ou para mal. Pessoas ocupadas e pragmáticas não perdem tempo com o passado. Nós, os desocupados, vivemos às voltas com rebanhos de acontecimentos perdidos em algum lugar da juventude ou da infância. Uma letra de música, um acorde qualquer, um aroma, um perfume, um timbre de voz, uma cor, uma brisa, qualquer coisa assim abre a porta do vivido.

Houve um tempo em que a cada domingo íamos a um teatro da periferia de Paris: Bobigny, Nanterre, Saint-Denis, Gennevilliers, Alfortville, Ivry, Malakoff e outros assim. Não, caro, leitor, não falo disso para me exibir ou bancar o esnobe. Nada havia de muito chique em ir à chamada “banlieue”, o subúrbio parisiense. Era só vontade de conhecer os arredores, de ver boas peças quase de graça, de ver no palco celebridades francesas, de dar um bom passeio de metrô ou de trem de curta distância e voltar para casa cheio de boas recordações para consumo futuro. Era possível ver dos clássicos a montagens experimentais de grande ousadia.

Aquelas tardes de domingo me assaltam a mente quando menos espero. Era um ritual: comprar a revistinha Pariscop, trocar meia dúzia de frases protocolares, sempre na mesma ordem, com o senhor impassível da banca de jornais, esquadrinhar cada peça disponível, escolher o que veríamos, antecipar a trajetória no mapa, mergulhar na escuridão do metrô, desembocar nalgum lugar gelado, contemplar a dureza do inverno europeu, caminhar sentido o frio no rosto, entrar em salas superaquecidas, perder a noção do tempo mergulhado em universos de Molière a Eugène Ionesco.

Outro dia, foi um cheiro de café que me fez relembrar daquelas velhas e doces tardes de domingo. Um cheiro de café no centro da cidade, antes das oito da manhã, que me invadiu o imaginário como se uma chave milagrosa abrisse a fechadura de um fundo falso. Não, leitor, não tento imitar o personagem de Marcel Proust molhando bolachinha no chá. Apenas conto o que acontece comigo e certamente com todo mundo. Um cronista quando diz eu – na solidão do seu trabalho – quer dizer todo mundo. Naqueles passeios com ar de expedição antropológica eu ficava espantado com a regularidade das casas. Não me pareciam de verdade. A vida real me escapava. Sim, eu sei que já falei disso. A memória é uma caixa de ressonância. Há notas que se repetem como ecos num abismo existencial.

Lembro-me de todas as peças que vimos? Não. Guardamos programas. Nunca chove, porém, o suficiente em fins de semana para que eu tenha tempo e disposição para revisar nossos arquivos. Vez ou outra, no entanto, uma dessas imagens me vem às mãos como um resto de sol antes do anoitecer e me pego emocionado, sentimental, como se um cisco me tivesse entrado num olho num crepúsculo de outono repassando meus vinte anos de idade. Então, para recuperar o sorriso, eu converso com o leitor como numa mesa de bar. Depois, abro a janela e inspiro o ar da rua como se fosse um souvenir.

*

A França treme. As ruas falam. O que dizem? Tantas coisas. Principalmente que não se suporta mais a falta de representação. Os esquecidos urram contra o sistema e quebram os bancos. Um modo de vida é abalado.

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