Gênero e lugar de fala em “A hora da estrela”

Gênero e lugar de fala em “A hora da estrela”

Centenário de Clarice Lispector

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       Clarice Lispector faz cem anos. Faria. Nasceu em 10 de dezembro de 1920 na Ucrânia. Morreu no Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1977. Viveu três anos de uma infância pobre em Maceió. Morou até os 14 anos em Recife. Depois, integrou-se à paisagem carioca. O que é uma biografia diante de uma obra? Ela escreveu muito em jornais e em livros. Tinha fome de palavras. Teve seguidores antes das redes. Um dos seus livros mais impressionantes tem míseras 104 páginas. Desmente o mito de que livro de verdade para em pé. “A hora da estrela” (José Olympio, 1977) é a história da alagoana Macabéa, feia de doer. Glória, sua colega de trabalho, perguntou-lhe um dia sem muitos rodeios:

– Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?

      Macabéa, por instinto, talvez, que não sentia vinganças, deu o troco sem saber que o fazia, pois de nada sabia, nem de si mesma:

– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.

      A outra tinha vaidade. Declarou-se não feia. Mas era. Se o narrador não mente. E aí se chega ao ponto: quem narra? Quem conta a história dessa nordestina sem história, sem vida, sem corpo e seios? Um homem? Como assim? É o que a autora diz: “A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade”. O leitor que julgue. A história tem começo, meio e fim, como quer o narrador (e a autora), mas do seu jeito. Sinuoso. Gustave Flaubert disse: “Madame Bovary sou eu”. Ele pintou certamente a mulher mais verossímil da história da literatura. Como conseguiu?

      Macabéa, contada por Rodrigo, só é aquilo que é por ter atrás do narrador uma autora? Rodrigo não pode ser avaliado. Ele é invisível. Mas tem o Olímpico, macho paraibano, que namora Maca por algumas páginas de pura brutalidade e dura realidade. Clarice acerta nos dois? O imaginário narrativo da época é muito diferente do atual. O narrador (autora narrando como homem?) ironiza suas possibilidades. Sugere que qualquer um escreveria o mesmo que ele: “Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”. Só uma mulher poderia fazer essa ironia? Essa é uma pista de que por trás de Rodrigo está uma mulher e que isso condiciona a narrativa?

      Machado de Assis, o homem que inventou a pós-modernidade antes da modernidade, já brincava com todos os recursos da metalinguagem e da relação do autor com o leitor: montava e desmontava a história diante dos olhos de todos. O narrador ria de si mesmo, riscava frases, prometia cortar trechos antes da impressão. Clarice Lispector, com menos bom humor e mais retórica romanesca, o tal adensamento da linguagem tão ao gosto dos modernos, pontua aspectos da condição de gênero e do lugar de fala antes que isso se tornasse o pulmão das histórias. Macabéa tinha uma tuberculose nascente. Boneca ucraniana: o narrador está dentro do autor, que está dentro da escritora...

 

Efeitos narrativos

 

      Na época em que Clarice Lispector escreveu “A hora da estrela” termos como gênero e lugar de fala não estavam em voga. A autora estava preocupada com estilo. Faz o narrador, que se apresenta como autor, dizer que quer escrever mais simples, embora use vós (concordai?), para dar conta das “aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela”, o Rio de Janeiro. Clarice se revela no que brinca de esconder: “Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo”, diz Rodrigo. Escrever com o corpo remete culturalmente a um gênero? As mulheres do tempo de Clarice é que escreviam com o corpo? Fica sugerido que há quem escreva com a razão, com o cérebro, e quem escreva com o corpo. Escrita cerebral contra escrita corporal. Apolíneo versus dionisíaco? Razão cartesiana versus sensível?

O autor/narrador revela que a datilógrafa Macabéa mudou-lhe a vida de “homem até mesmo um pouco contente”, apesar do mau êxito da sua literatura. Autoironia que reconstitui a autoria? Piscar de olhos para uma plateia informada? Macabéa como fruto de uma mulher que não se restringe à condição de mulher no seu tempo e ao que lhe designam? Rodrigo quer narrar a realidade, transgredir seus limites, falar do que o ultrapassa, essa vida de uma “cadela vadia”, sem mentiras, sem palavras enfeitadas. Informa: “Para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras”. Ser homem, com estereótipo masculino, dá-lhe instrumentos para entender melhor a mulher que descreve, cria, inventa, captura. Que paradoxo é esse? Em que a barba lhe permite ver melhor as entranhas murchas de Macabéa?

      Vista pelo olhar masculino fictício, Macabéa fica mais real? O procedimento de descoberta não demora a ser apresentado: “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem”. O criador muda com o que cria. Muda para criar. Coloca-se no lugar do outro que poderia existir. Movimento em dois sentidos. Um aviso aos navegantes. Saibam que a literatura é sempre assim: sair de si e entrar no corpo dos personagens de todos os gêneros e falas. Rodrigo afirma “conhecer nos menores detalhes essa nordestina”. Conhecimento da experiência, “pois vivo com ela”, como seu fruto, e da percepção aguçada, “e como muito adivinhei a seu respeito, ela se grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra”. O artista adivinha o outro por empatia e talento. Em vez de lugar de fala, ponto de vista. A magia da arte consiste nessa adivinhação, de ser quem não se é nem se será.

      Clarice/Rodrigo faz questão de pavimentar o terreno: “Crio a ação humana e estremeço”, “para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado neste cubículo onde me tranquei e de onde a veleidade de querer ver o mundo”. Eis o mistério da arte: criar o mundo a partir de um ponto, ver o todo a partir do nada. É palavra por palavra: “Ou não sou um escritor?” As regras do ofício estão dadas. As metas também. O escritor pode tudo. Se for um de fato, isolar-se para ver melhor melhor lá fora e moldar vidas feitas de palavras. Verdade ou mitologia corporativa? Distância e proximidade: “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus”. Um não é outro, mas se fundem. A autora esboça uma teoria da dialógica/dialética criativa.

      Macabéa é apresentada com “sua cara de tola, rosto que pedia tapa”, “tão jovem e já com ferrugem”. Rodrigo poderia por seu nome na capa do livro sem consequências para a interpretação da história ou só fala assim por ser através do seu olhar de homem que tudo se apresenta? Esse rosto que pedia tapa só pode ser por vir de Clarice ou de Rodrigo? É uma mulher admitindo algo com forte teor machista ou um autor fictício sendo verossímil no machismo da época? O gênero é uma possibilidade: “Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol”. Apaixonada por goiabada com queijo e Coca-Cola, a virgem e insipida Macabéa se impôs: “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência”. Artifício narrativo ou profissão de fé na autonomia do personagem e do autor? A resposta parece evidente: somos todos. Um ator é ele e a humanidade que possa entrar na sua narrativa. Há, no entanto, uma “mulherice”, essência da “mulheridade” admitida.

      Pode um homem capturar essa mulherice mesmo tardia? Todo o livro parece dizer o mesmo: “Bem sei que é assustador sair de si mesmo”. Mas é possível, praticável, comum em arte. Sair de si e entrar no outro: estranhamento, entranhamento, desentranhamento.  Vez ou outra, porém, um passo atrás: “Teria ela a sensação de que vivia para nada? Não posso saber, mas acho que não (...) Mas eu que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada”. O autor não é o personagem. O narrador tampouco é o autor. Nem o personagem. Todos eles se cruzam. Um pode se colocar no lugar do outro: “Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não?” Essa é a pergunta que permanece: por que não? Madame Bovary seria mais real se tivesse sido escrita por uma mulher? O artista faz-se outro. É muitos. É todos: “Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra”, diz o narrador de Clarice revelando as marcas no corpo da escritora.

      “A moça é uma verdade da qual eu não queria saber”, acrescenta. Uma verdade. Não uma possibilidade. Vaidade de autor? O leitor pode constatar por si mesmo. Olímpico, o fruto masculino de Clarice Lispector no livro, é uma Macabéa com singularidades. No primeiro encontro, ele chama Macabéia de “senhorinha: “Ele fizera dela um alguém”. Ambos se equivalem em “ninguendade”. Ele quer ser alguém. Ela não se importa com isso. O narrador/autor encara o que hoje se chama de lugar de fala. De onde vem o seu saber sobre os personagens: “Mas e eu? E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade... Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar. Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro. Quanto ao paraibano, na certa devo-lhe ter fotografado mentalmente a cara – e quando se presta atenção espontânea e virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo”. Provocação? O olhar de relance captura o corpo e a alma.

      A cara diz quase tudo? Pode-se dar um nome a essa competência: capacidade de observação. Só que depois vem uma ressalva: “Ninguém pode entrar no coração de ninguém”. Então? Sabe-se a verdade de alguém sem lhe entrar no coração? Rodrigo/Clarice diz que Glória “tinha o sestro molengole da mulata”. A cartomante conta a sua vida antes de decifrar a de Macabéa. Fora prostituta. Tivera o seu homem: “Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar”. A quem responsabilizar? Clarice ou Rodrigo? Coisas de um personagem machista? A cartomante não se conteve: “Ai que saudades da zona!” Fetiche de autora distante desse mundo ou relance revelador?

      A cartomante se engana. Prevê o atropelamento de uma mulher, que sai chorando. Vê um futuro radioso para Macabéa, que acaba atropelada. O narrador disserta: “Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher”. As perguntas não cessam: quem pode captar esse destino circular, ser o que se nasce para ser? A nordestina Macabéa é a judia ucraniana Clarice. É e não é. Sendo. Num relance.

 

Falas sem lugar

 

      Se Clarice tinha lugar de fala para fazer a nordestina Macabéa, mesmo sendo judia ucraniana, graças aos seus “relances” de Maceió e Recife, não o tinha para conceber Olímpico. O lugar de fala, contudo, não é uma camisa de força. Não interdita. Nem precisa deslegitimar. Questiona. Será que todos esses homens que inventaram mulheres e todos esses brancos que conceberam personagens negros o fizeram baseados em alguma transfiguração? Saíram de si mesmos? Otelo seria outro se Shakespeare fosse negro? A ideia de lugar de fala não está errada nem significa um lugar de cala (de fazer calar). Põe em discussão o metro com que foram medidas as criaturas geradas por séculos de arte canônica. Um Shakespeare negro com o talento de Shakespeare faria certamente outro Otelo. Uma mulher com o talento de Flaubert faria outra madame de Bovary. Por que não melhor? Certamente diferente.

      O problema está em outro lugar: tantas falas sem lugar ao longo do tempo. Homem brancos heterossexuais medianos cuspindo todos os gêneros e falas como um cartório declarando nascimento sem a genialidade de Balzac, que concebeu Seráfitus/Seráfita num único ser. A fortaleza dos costumes sempre esteve assediada como Oscar Wilde prova. A exclusão, ainda assim, foi a tônica. Como teria se, antes da fixação do parâmetro, todos os outros tivessem falado? Se “ninguém pode entrar no coração de ninguém” não haveria arte. Nada de literatura. A arte é um assalto ao coração do outro. Clarice Lispector quis sair de si por meio de um narrador homem e de uma nordestina. Entrou no coração dos leitores. Entrou no coração de Macabéa? Como teria sido essa história contada por uma “nordestina amarelada”?

 


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