Gabriela, um clássico de Jorge Amado

Gabriela, um clássico de Jorge Amado

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 Jorge Amado não foi apenas o mais famoso escritor brasileiro antes de Paulo Coelho. Foi também um dos melhores. Enfrentou resistência não só por ser comunista, mas especialmente por escrever para ser lido. Uma escola de críticos modernosos brasileiros decidiu que só era bom quem escrevia para ser decifrado. É o pessoal que só goza com neologismos, implosão da frase convencional, hermetismo, delírios verbais, metalinguagem, ausência de intriga, construções teratológicas e outros experimentalismos tais. Nada tenho contra experiências estéticas. James Joyce foi ótimo. Guimarães Rosa me encanta. O francês Guy Debord fez filme sem imagem. Ótimo. Maravilha.

A França tem grandes autores em todos os registros: do límpido balzaquiano ao sinuoso Marcel Proust, do sutil Flaubert ao curvilíneo Céline, do precioso Claude Simon ao irônico cristalino Michel Houellebecq. Os Estados Unidos não ficam atrás. Basta pensar em William Faulkner e em Ernest Hemingway. Tudo pode ser bom quando esbanja criatividade e produz descobrimento: fazer vir à tona o que não vemos por incapacidade perceptiva individual. O experimentalismo é um modo entre outros de fazer arte. Como sou pluralista em tudo, admiro outras formas de expressão. Amado não foi menos bom do que Rosa. Apenas operou noutro registro. O seu maior clássico, “Gabriela, cravo e canela”, está completando 60 anos. É maravilhoso. Obra-prima.

Durante muito tempo os contadores de histórias foram desprezados pelos fazedores de glória alheia. Farei uma comparação dessas que provocam ranger de dentes: Amado foi o Balzac brasileiro. Os chatos adoram dizer com desprezo e empáfia em qualquer situação ou campo:

– Não dá para comparar.

Claro que dá. Quase tudo pode ser comparado. Adoramos comparar. Aliás, comparar é muito bom. Eu amo comparar. No futebol, volta e meia alguém nega o valor das comparações. Em seguida, repete o clichê:

– Pelé foi o melhor jogador de futebol de todos tempos.

Foi mesmo. Isso significa que o comparamos com todos os demais, inclusive com os goleiros. Estou com a macaca. Acordei pirado. Não tomei meu rivotril. Sem futebol, com lesão no joelho, fico em crise de abstinência. Farei até lista dos melhores. Fixar cânone faz parte da libido dos administradores do gosto. Dá tesão. Houve um tempo em que incomodavam citando o rei do cânone, Harold Bloom, todos os dias. Ninguém leu todos os autores. Rigorosamente falando toda lista de melhores é um abuso de poder de juízo. Um abuso que excita. Lá vai.

Os cinco melhores escritores brasileiros de todos os tempos foram: Machado de Assis (da fase realista, pois o da primeira parte não fica entre os 50 melhores); Guimarães Rosa e Jorge Amado empatados; Graciliano Ramos e Lima Barreto. A arte é tão cheia de mistérios que um escritor medíocre pode conceber um grande livro. Foi o caso de Josué Montello com “Os tambores de São Luís”. Claro que a recepção depende de fatores fora da obra como boa mídia, relações e prêmios obtidos no jogo político entre editores e julgadores. Pierre Bourdieu explica isso tintim por tintim em “As regras da arte”.

“Gabriela, cravo e canela” é uma pérola barroca. A personagem existe em nossas vidas como Dom Quixote ou Capitu. Isso é para poucos. A novela de Walter George Durst ajudou a encravá-la no imaginário de homens da minha geração. Quem não pensa em Gabriela, no corpo da bela Sônia Braga, em cima do telhado buscando a pipa? Só fica o que foi criado com a consistência da realidade. Jorge Amado brincou de Deus e foi verossímil. Um bom escritor é aquele que cria um mundo com palavras e faz pensar que esse mundo é feito de terra, água, ar, sangue, fogo, desejo, paixão, grandezas e misérias existenciais.

O Brasil atual tem bons escritores. Até muito bons. Nenhum com a grandeza de Jorge Amado. Por quê? O que houve? Por que não produzimos mais escritores da estatura de Amado, Rosa e Graciliano? Os novos donos da bola, que reinam em Paraty e representam o país em eventos estrangeiros com a proteção do Ministério da Cultura, não amarram o sapato do fabuloso Jorge. Lembram os jogadores brasileiros que não conseguem ir atuar na Europa. A novíssima geração dá com boa vontade um time do Vasco da Gama. Não resisto a essas comparações futebolísticas. Ando lendo demais os antigos discursos do Lula.

Gabriela já inundou os sonhos de muita gente. Eu penso nela como quem pensa num primeiro amor ao mesmo tempo possível e impossível, próximo e distante, vivido e nunca esquecido. Penso nela fruindo cada palavra simples da narrativa de um autor no mais perfeito domínio da técnica de contar uma bela história: “Quando os dois grupos se encontraram, no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume. Ainda agora, através da sujeira a envolvê-la, ele a enxergava como a vira no primeiro dia, encostada numa árvore, o corpo esguio, o rosto sorridente, mordendo uma goiaba”.

 

 

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