Gambito da pandemia

Gambito da pandemia

Série da Netflix é vacina de otimismo

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      Não sei dirigir nem jogar xadrez. Nunca tentei aprender. Agora é tarde para começar. Durante muito tempo, vi corridas de Fórmula 1. Via por patriotismo e gosto por competições. Quando pilotos passaram a ganhar corridas e títulos em séries quase intermináveis, larguei. O xadrez me parece grego. Um jogo de muita inteligência e memória. Em 2020, vi três séries na Netflix que me fascinaram: “Bolívar”, “Anne com E” e “O gambito da rainha”. A primeira é uma novela (62 capítulos) com liberdades históricas suficientes para se garantir como ficção. A segunda, um folhetim açucarado para adolescentes. Adorei. A última, cantada em prosa e verso, tinha tudo para dar errado: os conflitos não são suficientemente desenvolvidos, falta amarração e aprofundamento.

      Mesmo assim, é emocionante. Uma órfã genial que vence americanos e russos no universo machista do xadrez dos anos 1960. A menina, carregando os seus traumas, vence sem parar. Os meninos perdem e se apaixonam. Os Estados Unidos tentam usá-la na luta contra os soviéticos. Ela resiste a tudo e todos: enfrenta a solidão, o passado, o alcoolismo e os monstros do seu campo. Volta e meia, surge um vilão no seu caminho. Parece que ela ficará encurralada. Não dura. Em “Anne com E”, história com menos ambições, os obstáculos surgem para ser vencidos o mais rapidamente possível confirmando a esperteza da ruivinha protagonista. Em “O gambito da rainha” não é muito diferente. Só que já não se trata de esperteza, mas de genialidade e troféus.

      O famoso escritor Bernard Shaw, frasista impiedoso, teria dito que a inteligência para jogar xadrez só serve para aumentar a capacidade de jogar xadrez. Essa tirada sempre me faz pensar num ótimo jogador que passou pela dupla Gre-Nal, inteligente dentro de campo, incapaz de achar o caminho de casa dirigindo o seu carro. Mandava um táxi seguir na frente. Existem muito tipos de inteligência. Os brasileiros usam uma delas como poucos: a capacidade de sobreviver às intempéries. “O gambito da rainha” é uma história sobre talento, perseverança, preconceito, ideologia, individualismo e trabalho em equipe. Uns poderão dizer que vence o mérito. Outros, que ganha o talento inato, que pode ser aprimorado, mas não aprendido ou criado.

      “O gambito da rainha” só tem sete capítulos. É quase impossível não querer “maratonar” e ver todos no mesmo dia. Metódico, com uma biografia de noveleiro, tento economizar e ver disciplinadamente o meu quinhão de cada noite depois do jornal. Consumo imagens e ficções como parte da alimentação cotidiana. Quando uma série acaba, eu me desespero: e agora? Tento mergulhar em mundos estranhos como o de “Black Mirror”, mas não é a minha praia. Morro logo de tédio. A ficção científica me cansa por ser demasiadamente “cientificizante”. Sem contar os figurinos. Só me assusto mais com séries de terror. Começo a tremer e durmo. Vampiros e lobisomens são os melhores soníferos. E agora? Verei “The crown”. Se a pandemia se alongar, tentarei o xadrez. Olhei as regras na internet e pensei: é mais fácil do que o piano.


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