Golpe em quatro capítulos

Golpe em quatro capítulos

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Angústia paulista

 

Dá até para entender o desespero paulista. A locomotiva econômica do país não consegue controlar politicamente a nação. A última vez que teve no cargo um presidente da República, eleito pelo voto direto, Rodrigues Alves, foi entre 1902 e 1906. Alves foi eleito novamente em 1918, mas, abatido pela doença, não tomou posse. Depois disso, São Paulo elegeu, com ajuda da fraude e da ruptura do pacto com Minas Gerais, Júlio Prestes, que não assumiu o posto, impedido pela revolução de 1930 comandada por Getúlio Vargas. Só restou a São Paulo aproveitar algum golpe para emplacar um interino sem votos.

Foi assim em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros e da tentativa de golpe contra Jango, quando Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, aboletou-se no poder por alguns dias. Em 1964, quando Jango foi derrubado, Mazzilli representou São Paulo novamente na cadeira presidencial. Nem ditador militar eleito pelo voto indireto São Paulo conseguiu emplacar. Tentou colocar o civil Paulo Maluf na presidência. Não levou. Triste destino. São Paulo e o voto direto para a presidência da República não se dão bem. Parece uma maldição. O máximo que São Paulo alcança é eleger algum paulista adotivo, como o carioca Fernando Henrique Cardoso ou o pernambucano Lula. Mais de cem anos sem um presidente deve dar nos nervos. Abala o ego de qualquer Estado orgulhoso da sua importância nacional.

Michel Temer, pelo voto direto, teria dificuldades para acabar com a maldição paulista. As pesquisas não lhe dão mais de 2% das intenções de voto para 2018. Empata com o PSOL. É quatro vezes menos do que o escore de Jair Bolsonaro. Opa! Bolsonaro nasceu em Campinas. As chances de São Paulo com Bolsonaro, carioca por adoção, também não são grandes. A única maneira de acabar com o jejum foi recorrer a um atalho. Basta pensar, por analogia, no Corinthians, que teve os seus anos sem títulos antes de se tornar a potência global de hoje. Poderiam os paulistas aceitar 110 anos sem o Timão levantar uma taça? A CBF tomaria providências.

Algum atalho se encontraria. Evidente.

São Paulo elegeu três homens, que tomaram posse e governaram, para a presidência da República: Prudente de Moraes, Campos Sales e Rodrigues Alves. Alagoas também teve três presidentes: Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Fernando Collor. É verdade que os dois primeiros foram eleitos indiretamente, sendo que Deodoro não foi até o fim e Floriano ficou no cargo contrariando a Constituição, que previa novas eleições na vacância da presidência antes de dois anos de mandato. Já o último, esse tal de Collor, acabou como se sabe.

Não é uma glória chegar ao poder pela porta dos fundos. Os paulistas, contudo, podem racionalizar dizendo: “É o que temos para o momento”. São Paulo quer ter um paulista da gema na presidência. Por que não consegue pelo voto direto? O que os brasileiros têm contra candidatos paulistas? José Serra pretende tentar de novo em 2018. Geraldo Alckmin também. O mineiro Aécio Neves precisará ser removido do caminho para que um dos tucanos paulistas entre na corrida. Uau!

     

Ponto de vista

 

      A vista depende de um ponto. Uma coisa é olhar de cima. Outra é olhar para cima. Michel Temer formou um ministério só de homens, brancos e ricos. Conversei com muita gente sobre isso. A conclusão foi contundente: homens consideram normal um ministério masculino. Brancos não veem problema num ministério monocromático. Ricos consideram natural uma equipe de bem aquinhoados. Homens brancos ricos sustentam que não há obrigação de colocar mulheres, negros e índios no primeiro escalão do governo. Fiquei perplexo com essas respostas. Fui ouvir mulheres, negros e índios (só encontrei um).

As mulheres com as quais falei usaram uma única palavra para definir o ministério de Temer: machista. Fui ouvir negros. A palavra foi uma só: discriminatório. O índio disse que não gostaria de ver um dos seus no ministério do Temer. Fui ouvir pobres: ninguém usou a palavra plutocracia. Preferiram um termo mais comum: panela de classe. Encontrei pessoas muito equilibradas. Uma delas, uma senhora, disse: “Nem todos são ricos no ministério do Temer”. Anotei no meu bloco. Um senhor observou: “A questão não é de obrigação, mas de entendimento. Por que só homens brancos? O que isso sinaliza?” A piada do momento nas redes sociais de oposição a Michel Temer diz que não há mulheres nem negros no ministério do governo provisório porque mulheres e negros não estão precisando de foro privilegiado. Uau!

Um rapaz questionou de dedo em riste: “A mídia acredita mesmo que o problema do país é excesso de ministério e que se economiza muito dinheiro diminuindo o número de pastas?” Fiquei olhando para ele, que emendou: “Cortar ministérios e cargos de comissão não faz nem cosquinhas no orçamento da União”. Perguntei a sua profissão: cavador de buracos. Um tiozinho não se conteve: “O que o presidente pode fazer se o mais conveniente para ele é ter essas pessoas no ministério, que, por acaso, são homens, brancos e até ricos? É só coincidência”.

Não perguntei os nomes. Na verdade, perguntei, mas não os anotei.

Queria conservar cada um na autonomia do anonimato.

Uma adolescente espevitada me provocou: “Vai ficar só perguntando? O que senhor acha disso?” Pestinha. Eu acho uma aberração. A confissão de uma sociedade comandada por machos brancos dominantes. Um vestígio do nosso velho coronelismo patriarcal. Um recado também? Depois do governo de uma mulher, expulsa do poder por incompetência e arrogância, a ordem e o progresso dos homens eficientes? Ordem na casa? Progresso na pátria? Custo a acreditar nessa mensagem. Mas me impressiono com essa coincidência de gênero, cor e classe. Tiro uma conclusão irrefutável: retorno do clube do bolinha. A gurizada do Temer vai se sentir bastante à vontade, nas reuniões de ministério, para ficar de empulhação e de sacanagem.

Uma mulher na Cultura calará a boca dos maledicentes. Um amigo me garante que o Brasil está ficando parecido com o Irã. Discordo. No Irã, as mulheres lentamente estão conquistando avanços na certeza de que não haverá recuos. Entre nós, tudo depende do ponto de vista.

 

Olhar do outro

 

O mais poderoso jornal do mundo, o americano The New York Times, não foi na onda da mídia brasileira e afirmou que Dilma Rousseff pode "pagar um preço desproporcionalmente grande por irregularidades administrativas enquanto vários de seus detratores mais ardentes são acusados de crimes mais escandalosos". Le Figaro, jornal francês mais conservador do que o reacionário Estado de S. Paulo, o que não é pouco, revelou a sua perplexidade: "O que está acontecendo no Brasil no momento é o maior paradoxo: a presidente Dilma Rousseff foi destituída por deputados e senadores que, dois terços deles, estão envolvidos em casos de corrupção em relação aos quais as acusações contra a presidente parecem pecados venais".

O prestigioso Le Monde registrou que Michel Temer foi citado na Lava Jato (três vezes) e que os acusadores são tão ou mais corrompidos que os acusados. O inglês The Guardian fez um inventário completo das iniquidades brasileiras. Citou erros do governo Dilma, mas foi implacável: “O impeachment de Dilma Rousseff é um dia triste para a democracia e pode ser visto como uma tragédia”. Se pode haver esperança, The Guardian lembra também que o Brasil, a exemplo de outros países latino-americanos, como Argentina e Chile, tem “um longo caminho a percorrer antes de se tornar uma democracia estável”, o que exige “pluralismo e diversidade na mídia”.

Ingleses abusados!

Sem papas na língua (a batata não é inglesa), The Guardian garante que Dilma “foi vítima de seus próprios erros na economia”, mas também de “um processo que está sendo visto como extremamente controverso e hipócrita - para muitos uma forma de ‘golpe suave’ - ??liderado por políticos acusados de corrupção”. Para o jornal inglês, a crise brasileira “só pode ser compreendida olhando para a história do autoritarismo, da desigualdade social e da exclusão dos pobres por elites que, com exceções, têm sido tradicionalmente hostis a qualquer forma de mudança social”. Recomendação: “O Brasil precisa de profundas reformas estruturais, da agricultura à política e tributação. Atualmente 70% dos impostos são cobrados sobre o consumo, e apenas 30% na propriedade”. A lista de jornais estrangeiros com dúvidas sobre a pertinência do afastamento de Dilma é um catálogo.        O homem que pretende mudar o Brasil assumiu com um ministério formado por machos brancos dominantes. Nenhuma mulher. Nenhum negro.

Os seus defensores garantem que isso é normal. Entre os ministros de Michel Temer constam figurinhas repetidas dos governos Lula e Dilma e sete citados na Lava Jato. O notável da equipe é a falta de notáveis salvo notórios plantonistas do poder com Sarney Filho e Romero Jucá.

Como sei pouco, tendo aprender lendo jornais do mundo inteiro. Fico surpreso com a diferença de pontos de vista em comparação com a imprensa brasileira. Só posso tirar uma conclusão incontestável: esses gringos são comunistas ou não compreendem o nosso país.

Deve ser efeito das caipirinhas sobre a mente dos correspondentes. Yes!

 

Hat-trick do PMDB

 

      Como seria ganhar três vezes na megassena sozinho sem ter jogado? Ou apenas por ter emprestado o dinheiro a quem jogou? Ou por ter acompanhado o jogador até a lotérica? Desde a implantação da República, em 1889, o Brasil teve, sem contar juntas governativas de curtíssimo prazo, 36 governos. O PMDB chega ao terceiro presidente sem jamais ter vencido uma eleição. A cada 12 governos, um é do PMDB sem a consagração direta das urnas. Se tirarmos a interinidade de Ranieri Mazzilli em duas rápidas ocasiões, numa tentativa de golpe e num golpe, ficam 34 governos. Se descontarmos os cinco generais presidentes, sobram 29 governos. Se tirarmos os governos de Getúlio, de Carlos Luz (três dias) e de Nereu Ramos, em 1955, restam apenas 26 governos. A cada 8,6 governos, um é do PMDB. Sem votos. Beleza!

Daria ainda para tirar o governo de José Linhares (presidente do STF), depois da queda de Getúlio, em 1945. Vice, no Brasil, é um perigo. Em nove ocasiões, o vice deveria ter assumido o lugar do titular. Na hipótese mais ampla, em torno de uma vez a cada quatro governos. Na hipótese depurada, uma vez em cada três governos. Floriano Peixoto foi o primeiro vice a ficar com o cargo do presidente. Nilo Peçanha foi o segundo. Delfim Moreira foi o terceiro. Mas Delfim foi consagrado com novas eleições. Eram outros tempos. Café Filho foi o quarto. Não se segurou no cargo. Jango foi o quinto. Não o deixaram terminar o mandato. Pedro Aleixo deveria ter sido o sexto. Mas ele, segundo de Costa e Silva, não levou. Ainda não era tempo de passar o poder a um civil. José Sarney, civil a serviço dos militares, foi brindado com a morte de Tancredo Neves e, homem de confiança da ditadura, chegou ao poder como democrata peemedebista.

Itamar Franco viu o poder cair-lhe no colo. Não conspirou para ser coroado. Foi o segundo peemedebista a ganhar o poder sem votos. Tinha saído do PMDB. Mas, em 1992, desligou do PRN e ficou encostado no seu partido do coração, do que qual, pela alma, nunca saiu, até assinar ficha mais tarde. Vale lembrar que Jango, pelo PTB, teve votos próprios. As eleições eram separadas. Jango, na sua primeira eleição para vice, fez mais votos do que JK (PSD). Só não fez mais do que Jânio Quadros, em sua segunda eleição para vice, por ter havido uma cisão no seu campo. Com Michel Temer, feito um Suárez no Barcelona, o PMDB faz o seu hat-trick: três tentos, como diziam os narradores, no jogo. Sem chutar a gol. Já pode até pedir música no programa de televisão da rede que o apoia. O mais interessante, na hat-trick do PMDB, é o tempo: três presidentes sem votos em 30 anos. Um a cada dez anos. Que média!

Essa é a jabuticaba. Só tem no Brasil. Em que outro lugar um partido emplaca um presidente a cada dez anos sem ganhar a eleição. Mais ainda, sem nem concorrer com cabeça de chapa? Apenas dois vices assumiram por morte natural do titular: Nilo Peçanha e José Sarney. Café foi guindado ao poder pelo suicídio de Getúlio, contra o qual conspirou. No caso de Sarney, deveria ter acontecido nova eleição mesmo indireta. Vice é perigo.

No jogo político brasileiro, o PMDB é MSN (Messi, Suárez e Neymar): hat-trick fulminante.

Até sem jogar.

 

 

 

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