Gramática eleitoral do primeiro turno

Gramática eleitoral do primeiro turno

Nada foi perdoado

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Foi-se o primeiro turno da eleição de 2020.

Jair Bolsonaro não emplacou como cabo eleitoral.

Em Porto Alegre, a decisão da justiça eleitoral de impugnar a candidatura de José Fortunati, por razões técnicas, ajeitou a vida da direita, que ficou livre de Nelson Marchezan Júnior no segundo turno, a quem teria dificuldade de apoiar integralmente depois de ter pedido o seu impeachment. Os votos de Fortunati foram integralmente transferidos para Melo. Marcheza, mesmo com boa votação, ficou pelo caminho. Na Câmara de Vereadores da capital, 11 mulheres e cinco negros (quatro negras). Muita gente conhecida perdeu o emprego. O PSOL emplacou quatro vereadores. No Brasil, Guilherme Boulos (PSOL) vai ao segundo turno em São Paulo. O PT emagraceu. O PSOl vem tomando o se lugar. A fase da antipolítico foi-se pelo ralo

É comum se dizer que em política não há anjos.

Meus conhecimentos em angelogia são reduzidos. Ainda não sei quantos cabem na cabeça de um alfinete, embora tenha perdido horas com polêmicas medievais, astúcias antigas e adaptações modernas. Certas campanhas lembram mais um jogo de futebol de várzea na época em que por várzea se entendia um ringue de vale-tudo. Cada disputa eleitoral tem seu quinhão de baixaria. Neste ano, em alguns lugares, o nível baixo atingiu alguns picos. Ou será que, em tempos de coronavírus, estou mais sensível ao de sempre? O que me chamou a atenção? Machismo, despeito, ressentimento, vingança, rasteiras, traição, deslealdade, puxada de tapete, denúncia por meio de laranja, desespero pelo poder, chega pra lá, dissimulação, ardis, fígados comidos e ódio incontido.

Diz-se que político tem estômago de avestruz. Não posso acreditar que esses bichos possam suportar tanto dejeto. Golpes abaixo da linha da cintura são rejeitados em qualquer luta com um mínimo de senso ético. Trazer para a cena pública ressentimentos da vida privada deveria provocar alguma forma de cartão vermelho por falta grave. O jogo parece ser feito de uma sequência interminável de trancos: leva rasteira, cai, levanta, tenta dar a sua rasteira, toma outra, beija a lona, ergue-se, abraça o rival, toca o barco. O observador confunde-se: quem é aliado de quem? Quem é o verdadeiro inimigo? Quem fere? É por aí que a política perde credibilidade. O homem comum olha, rumina e conclui: que joguinho mais sujo! Conjuga-se assim: eu te derrubo, tu me derrubas, ele te derruba... Depois, se conveniente, eu te levanto.

      A gana de poder é tanta que o horizonte fica encoberto. Por que mesmo alguns se julgam tão importantes a ponto de fazer acrobacias para conquistar um apreço que não existe? No mundo ideal, seria proposta contra proposta, argumento contra argumento, ideologia contra ideologia, programa contra programa, dado contra dado. O eleitor racional escolheria e depois levaria seu cachorro para passear. Na prática, é dedo no olho, cuspida, insulto, mentira, fake news, costuras secretas inconfessáveis, induções, provocações baratas ou caras, viradas ideológicas de ocasião, abraços de urso, presentes gregos, caminhões de clichês, produtos embalados para confundir.

      Na gramática eleitoral é conjugação regular o “eu te apoio, tu me derrubas”, mas há também o “eu te derrubo, tu me apoias”. Se o irregular é regular, o anômalo não surpreende na indiferença quase generalizada. A entrada forte das mulheres no jogo não diminui o machismo. Ao contrário, provoca um estertor. Por mais que se busque novos termos para a análise, como se faz com êxito no futebol com o vocabulário dos neotáticos, na política continua em voga o “do pescoço pra baixo tudo é canela”. Há quem se recuse a usar o chute vulgar, o que não protege contra as agressões calculadas ou incontroláveis dos que se encontram em posição desfavorável. O verbo mais conjugado do primeiro turno foi “ferrar”. Na primeiro pessoa: eu te ferro...


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