Grandes histórias e grandes livros

Grandes histórias e grandes livros

O que conta para quem conta?

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      Os modernos conseguiram nos convencer de que a linguagem deve prevalecer sobre a história. Escrever difícil ou de forma obscura tornou-se a regra. Especialmente para ganhar prêmios e elogios de especialistas. Nas férias, li e reli grandes histórias. Mais uma vez, fiquei convencido de uma coisa: para escrever um grande livro o essencial é ter uma grande história para contar. Não é fundamental destruir ou reinventar a linguagem. “A festa do bode”, de Mario Vargas Llosa, é quase uma reportagem. A linguagem, mesmo o livro sendo muito bem escrito, é secundária. Llosa conta a história do ditador Trujillo, da República Dominicana, e dentro dela a história de um senador que entrega a filha virgem ao tirano para tentar se resgatar da desgraça.

      Dali saltei para a releitura de “Contos de Eva Luna”, de Isabel Allende. A imaginação é o que predomina. Não se engane o leitor: não é a linguagem no sentido empregado pelos modernos. Cada conto carrega no impossível, no imaginário, no exagero, na loucura, na fantasia, na explicitação do narrado como um grande “causo”. Contar bem significa traduzir em interesse aquilo que espanta, choca, deslumbra, fascina e pode ser entendido. É a surpresa que conduz a narrativa. Pulei para a “A amiga genial”, de Elena Ferranti, pseudônimo de uma autora que prefere não se identificar. Faz bem. Um livro deve ser admirado pelo que é, não pela biografia do autor. Será que os livros de Chico Buarque teriam a mesma acolhida com um pseudônimo, sem a sua assinatura consagrada? Pesquisadores deveriam fazer testes: mesclar textos de autores consagrados com textos de desconhecidos para avaliação cega de leitores. Será que os famosos ganhariam sempre? Ou havia surpresas?

      O livro de Elena Ferranti é de uma simplicidade de linguagem espantosa. A história que conta é esplêndida: a vida num bairro pobre de Nápoles pelo ponto de vista de uma menina em diferentes etapas: criança, adolescente, na escola, descobrindo o amor, crescendo, etc. A linguagem é uma obsessão de entendidos e de iniciados. O dito leitor comum, todos nós, pouco se importa com isso. Fui para a “Confissão da leoa”, de Mia Couto. Mais uma vez, embora já seja mais afetado e moderno, o que sobressai é a história. Tenho dito: fazer arte é produzir diferença e descobrimento (trazer sentidos à luz). Um livro pode ser bem escrito e nada descobrir (destapar, desocultar). O autor precisa perguntar-se ao final: o que o meu livro descobre? Que diferença produz? A diferença pode estar numa nova linguagem. Em geral, está na força da história contada. O singular no geral funciona bem.

      Em meio ao horror da ditadura dominicana, um senador cai em desgraça. A razão da sua queda não é explicitada. Ele quer ser resgatado. Aceita oferecer a filha como penhor. Não é improvável que a sua desgraça tenha sido um ardil para que desse a grande demonstração de lealdade ao tirano. A linguagem para contar isso é jornalística. A grande falha da literatura brasileira atual é a falta de grandes histórias. Os livros pouco descobrem e não fazem qualquer diferença.

Um pequeno governo pode dar um grande livro.


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