Homem comum abraça seus ressentimentos

Homem comum abraça seus ressentimentos

Crônica sobre um ser muito provável

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Homem comum

 

      Ele passou grande parte da sua vida uivando para a lua. Era assim que definia as suas críticas descabeladas a tudo e a todos, que também chamava de sistema ou de tudo que está aí. Ninguém lhe dava bola. Nos almoços dominicais da família podia estragar tudo provocando alguma discussão inútil na qual entrava só para contrariar e não saía para não dar o braço a torcer. Tinha o grande talento de sempre adotar o lado errado das coisas enfrentando o bom senso, a ciência e os mais esclarecidos, de quem escarnecia rotulando-os de pedantes e empolados.

      Tinha uma visão de mundo simples: era contra multas de trânsito, pois toda infração parecia-lhe uma necessidade do momento, contra punição a excessos policiais, dado que a culpa sempre seria do bandido, que, no mínimo, teria provocado o erro ou o excesso do agente da ordem, e a favor de todos andarem armados, sob a alegação de que as armas não atiram sozinhas, logo não passariam de instrumentos a serviço dos seus donos. Bandido bom para ele era bandido morto e ponto final. Aos jornalistas caberia defender a ordem e os bons costumes. Discursava para os seus amigos em botecos onde derrubavam florestas de cerveja.

      Um dia, quando tagarelava sobre a necessidade de acabar com reservas indígenas por não ver em índios seres diferentes ou “peças de museu”, um desconhecido, sentado na mesa ao lado, bateu palmas:

– Fecho com você, meu velho – disse.

      Surpreso, ele se ouviu perguntar candidamente:

– De verdade? Por que mesmo?

– Porque você é como a gente, como eu, como todo mundo.

– Sério?

– Sério. Você tem os mesmos ressentimentos que eu.

– Ressentimentos, não. Veja bem...

– Ressentimentos, sim, mágoas. Quem não tem? Não sinta vergonha de ser ressentido, de ter preconceitos, de ser um homem comum, seja o que você é. Vou dizer uma coisa: sendo aquilo que é, você me representa.

      Foi como uma iluminação. Dali em diante, encantado com o apoio inesperado, passou a fazer de cada preconceito uma tese, de cada absurdo uma bandeira, de cada olhar na contramão um horizonte. Descobriu que radicalizando encontraria ainda mais eco. Depois de algum tempo, no mesmo bar, sintetizou a filosofia que lhe guiaria a vida:

– As pessoas gostam de posições firmas, claras, duras. Vou ser o porta-voz de quem não quer saber de mimimi nem de papo em cima do muro.

– Vai bater em quem? – questionou um gaiato.

– Em quem o homem do povo bate: comunistas, gays, sindicalistas, nessa gente toda que não coloca a pátria e o civismo acima de tudo. 

      Assim foi. Encarnou o personagem às últimas consequências. Quanto mais se ouvia, mais se reconhecia, sem qualquer constrangimento anterior. Via-se como um participante do Big Brother, admirado não por ser genial, mas justamente pelo contrário, por ser igual ao fã.

– Se ele está lá, eu posso também – repetia.

      Durante anos ninguém entendeu o que ele queria dizer com isso. Então, não mais que de repente, ele chegou ao poder.

 


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