Homenagem tardia a um grande intelectual

Homenagem tardia a um grande intelectual

Lucien Sfez morreu no final do ano

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Os grandes não são fáceis. Mas podem ser cativantes.

Só fiquei sabendo em junho da morte, em dezembro último, de um velho amigo francês, de origem tunisina, Lucien Sfez, autor de grandes livros como “Crítica da comunicação” e “A saúde perfeita, crítica de uma nova utopia”.

Guardo dele lembranças divertidas, contraditórias, comoventes.

Há muitos anos, ele passou quatro meses conosco, em Porto Alegre, na condição de professor visitante na PUCRS. Foram aventuras e mais aventuras.

Na chegada, adoeceu. Passava os dias de sobretudo e com o ar-condicionado ligado no máximo do quente. Não se adaptava ao frio de Porto Alegre e à nossa falta de calefação para aquecer todos os ambientes.

      Era culto e explosivo, mas logo passava a ser doce e cativante. Criticou o trabalho de um aluno. Disse que era muito ruim. O aluno ficou magoado. Eu lhe disse que deveria ter falado que o trabalho não era bom. Num primeiro instante, insistiu que era a mesma coisa. Depois, seus olhos brilharam: “Isso é diferença cultural”, exclamou. E adotou a ideia. Adorava massas al dente. Fomos a um restaurante. Pediu espaguete “al dentissimo”. Veio o prato. Achou que estava cozido demais. Veio outro. Nunca estava “al dentissimo”. O garçom irritou-se. Trouxe um pacote cru de espaguete Barilla e colocou na frente dele. Temi que surtasse. Começou a rir.

Todos tivemos um ataque de riso. Sempre que nos encontrávamos, no Brasil e no França, onde nos convidava para jantar no apartamento que dividia com Anne Cauquelin, especialista em estética, exclamávamos:

– Al dentissimo.

      Em Porto Alegre, deu belas aulas, frequentou apresentações de música lírica e explorou todos os tipos de restaurantes, até em nossas ilhas. Numa delas, num agosto ventoso, com a casa cheia e ele impaciente com o frio, fizemos os pedidos. Vieram os pratos de todos, menos o dele. Cuspiu marimbondos. Partimos juntos a Paris. No controle de passaportes, descobrimos que ele tinha ficado além do permitido com visto de turista. Teria de pagar uma multa. A temperatura aumentou. Por alguma razão que não me lembro, na sala de espera, ele se desentendeu com um brasileiro mais ou menos da idade dele, que falava ótimo francês. Insultaram-se por horas. Quando um parava, o outro recomeçava. Tentei acalmá-los. Só piorou.

      Ao chegarmos em Paris, estava calmo e feliz. Nem parecia lembrar do estresse da noite. Poucas vezes conheci uma pessoa tão afetiva e explosiva ao mesmo tempo. Guardo dele lembranças maravilhosas de longas conversas sobre a importância de não se deslumbrar com os discursos excessivos das novas tecnologias, que sempre prometem o paraíso na terra e sempre encontram porta-vozes prontos para desqualificar quem não crê como eles nessa religião das máquinas, dos aplicativos e dos algoritmos. Dedicou a vida à pesquisa.

Era intelectual no melhor sentido do termo.

Enfrentava na esfera pública os grandes temas da nossa época. Transplantado do coração, vivia como um jovem destemido, mas não se descuidava. Consegui que o doutor Fernando Lucchesi o recebesse para uma revisão tranquilizadora.

      Lucien Sfez (1937-2018) foi professor de Ciências Políticas na Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne. Um pensador brilhante que sonhava com um mundo melhor, mais justo e menos submisso aos deslumbramentos tecnológicos.

       


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