Houellebecq, o romancista da depressão

Houellebecq, o romancista da depressão

Serotonina chega ao Brasil

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Michel Houellebecq pode ser um homem de poucas palavras, mas é um escritor de grandes frases. Mesmo as poucas palavras podem ser suplantadas por conversas sustentadas. A nossa amizade já dura 20 anos. Ela se alimenta de encontros, viagens e e-mails. Já o trouxe ao Brasil duas vezes. Uma façanha. Fomos juntos à Patagônia. Estivemos em eventos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Não me esqueço dos jantares na casa dele, em Paris. Tudo isso para dizer que o mais badalado escritor francês do momento está muito além dos estereótipos que fazem dele um casmurro, quase um eremita, um ser fechado e resmungão.

      Muita gente não gosta dele. Há quem o considere machista, direitista, conservador e politicamente incorreto. Não deixa de ser divertido que eu, acusado por alguns de radicalismo de esquerda, comunista e outros termos assim, tenha tantos amigos rotulados de reacionários. Tive a honra de ser amigo do historiador François Furet. Ia na casa dele. Para franceses, amizade é ir na casa do outro. Furet era visto como um inimigo da esquerda. Eu saía da casa dele e ia encontrar Jean Baudrillard, que se situava à esquerda da esquerda sem ter qualquer militância política. Jean se declarava patafísico. Quando falo dessas coisas, há quem me acuse de exibicionismo. Bobagem. Estive numa cidade de intelectuais durante anos. Fui ao encontro deles.

      Por mais de dois anos, frequentei as aulas de Jacques Derrida. Não perdia grandes cursos no Colégio da França. Por meses, fui às aulas de Umberto Eco e de Pierre Bourdieu. Ao final, ia falar com os professores. Descobria homens abertos, acessíveis e prontos a tomar um cálice de vinho num café qualquer. Eu não bebia. Eles, sim. Baudrillard lamentava a minha abstemia a cada vez. Servia-se uma segunda taça em minha homenagem. Sabia muito de vinhos. Dava aulas informais de ironia e paradoxo. Não acreditava mais em utopias. Tornara-se odiado pela direita e pela esquerda por ser independente.

      Atualizamos nossa relação, Houellebecq e eu, com e-mails curtos e objetivos. Eu também sou econômico em trocas virtuais. Alguns amigos me acusam de “frieza epistolar”. Li seu último romance, “Serotonina”, com certo atraso. Enviei uma mensagem a ele declarando meu encantamento com a beleza triste do livro. Michel respondeu com sua costumeira precisão: “Meu ponto de vista sobre os antidepressivos, na realidade, é simples: eles não curam, não curam mesmo, mas permitem extraordinariamente manter-se sociável. É necessário, às vezes, usar”.

Depressão – Eis tudo. Michel Houellebecq é um grande romancista da era da depressão. Já em “Extensão do domínio da luta”, seu primeiro romance, traduzido por mim, ele mostrava o seu interesse pelo tema. O personagem dizia: “Acabo de fazer 30 anos. Depois de um início caótico, me dei bem nos estudos. Hoje, sou funcionário de nível médio. Analista de programas numa empresa de informática. Meu salário líquido chega a dois mínimos e meio; nada mal como poder aquisitivo. Tenho a expectativa de uma ascensão significativa na firma, a menos que, como outros, decida trabalhar para um dos nossos atuais clientes”.

Homens com situação financeira estável, devastados pela depressão: “Em suma, posso me considerar satisfeito com minha situação social. No plano sexual, em contrapartida, o sucesso é bem menor. Tive várias mulheres, mais por tempos curtos. Desprovido de beleza e de charme pessoal, sujeito a frequentes acessos de depressão, não correspondo de modo algum às prioridades das mulheres. Sempre senti, nas mulheres que me abriam as pernas, como que uma leve reticência. No fundo, eu não passava para elas de um estepe, o que, vamos convir, não é o ponto de partida ideal para uma relação durável”. Linguagem crua.

      Em “Serotonina”, Michel Houellebecq consegue descrever a solidão depressiva de um homem com pinceladas letais: “Eu tinha sem dúvida envelhecido, não iria convidar o doutor Azote para ouvir discos comigo. Nenhuma amizade nasceria entre nós. O tempo das relações humanas fazia, em todo caso, parte do passado para mim”. É disso que seus livros falam, do momento em que uma pessoa se sente vencida, aquele instante sem retorno em que a certeza de conseguir acabou.

      Michel não dá mais entrevistas. Tudo o que tinha para dizer está nos seus livros. Numa das tantas entrevistas que fiz com ele, falamos sobre a importância do sexo na vida das pessoas. Ele respondeu assim sobre um dos seus temas favoritos, o fim da sexualidade, algo que lhe parece inevitável no percurso individual de cada um: “Sempre se pode colecionar miniaturas de avião ou fazer um curso de enologia. Alguns nem começam a vida sexual. A maioria se entedia depois que ela acaba. Em “Submissão”, o personagem, um professor universitário, encontra na organização da obra de Huysmans para a Plêiade uma atividade de substituição do sexo, mas, concluído o prefácio, ele fica sem saber o que fazer. Finda a temporada de caça, só resta aos homens colecionar algo”. Michel Houellebecq enfrenta as questões mais sensíveis. “Serotonina” já está nas livrarias brasileiras. É melhor correr.

 

 

 


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