Humano, desumano, pós-humano, transumano

Humano, desumano, pós-humano, transumano

Reflexão para a Jornada “Faces da des-humanização”da Sigmund Freud Associação Psicanalítica 


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1.  Ser humano

 

Houve um tempo em que o humanismo era um valor em si e podia servir de argumento de defesa intelectual. Jean-Paul Sartre, numa conferência proferida em 1945, foi categórico na medida das suas possibilidades: “o existencialismo é um humanismo”. Tratava-se de defender o existencialismo das críticas que sofria. Sartre precisou: “Muitos poderão estranhar que falemos aqui de humanismo. Tentaremos explicitar em que sentido o entendemos. De qualquer modo, o que podemos afirmar desde já é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana. A crítica básica que nos fazem é, como se sabe, de enfatizarmos o lado negativo da vida humana” (2014, p. 3).

      Essa ideia de que toda verdade remete ao humano entraria em colapso. Aos poucos, humanismo passou a ser sinônimo de antropocentrismo: o homem como medida de todas as coisas. Martin Heidegger, na sua famosa correspondência com Jean Baufret, em 1946, intitulada “Carta sobre o humanismo”, havia posto o dedo na ferida: “Se, no entanto, por humanismo em sentido geral, se entende o esforço tendente a tornar o homem livre para a sua humanidade e a levá-lo a encontrar nessa liberdade sua dignidade, então o humanismo se diferenciará segundo a concepção de ‘liberdade’ e de ‘natureza’ do homem. Do mesmo modo, serão diferentes as vias de sua realização. O humanismo de Marx não necessita de uma volta à Antiguidade nem tampouco o humanismo, concebido, por Sartre, como existencialismo. Nesse sentido amplo, também o Cristianismo é um humanismo de vez que, na doutrina cristã, tudo se dirige à salvação (sahis aeterna) do homem, e a história da humanidade aparece dentro da história da salvação”. Ser humano podia ser o apogeu de um destino.

      Por muito tempo o humanismo opôs-se à animalidade constitutiva do ser: razão contra instintos. Mas também foi o primado da “civilização” contra a “barbárie”. Ser humano significava arrancar-se da natureza pela cultura e pelo sagrado. A humanização era um processo de construção, lapidação e transfiguração pela ética e pela moral. O tempo mostraria que a razão nem sempre é tão racional quanto se diz e que a “civilização” pode ser bárbara, racista, colonialista, classista, um implacável sistema de hierarquia social. O humanismo passaria a ser visto por muitos como um “especismo”: o homem colocado por si mesmo no topo de uma hierarquia “natural” artificial capaz de justificar o controle sobre as demais espécies. No humanismo havia algo mais do que um autoelogio da humanidade. O humanismo era um etnocentrismo, um europeísmo, um modo de estar no mundo marcado por uma narrativa indulgente, arrogante e ingênua. O humanismo não via o homem com um grão de areia no universo, mas como o ponto mais alto.

      O humanismo tinha, de certo modo, uma vinculação com o geocentrismo: a Terra e o Homem como centros do universo. A revolução copernicana desalojou a Terra dessa posição central. O Homem, contudo, manteve-se no seu pedestal. A desumanização era o seu maior temor.

 

2.  Desumanização

 

Se a humanização era uma lapidação, a desumanização só podia ser vista como um embrutecimento. É possível, contudo, pensar a desumanização como des-humanização? Do embrutecimento à relativização do humano como categoria essencial. O humanismo seria, em algum momento, denunciado como uma noção ocidental, uma visão de mundo inexistente em outras culturas alheias à separação entre cultura e natureza. O homem morreu? Essa pergunta foi encarada por pensadores do século XX. Michel Foucault foi estimulado a dar respostas sobre a morte do homem a cada entrevista. Para Claude Bonnefoy (1966), ele resumiu: No ensino secundário, aprendemos que o século XVI foi a era do humanismo, que o classicismo desenvolveu os grandes temas da natureza humana, que o século XVIII criou as ciências positivas e que chegamos enfim a conhecer o homem de maneira positiva, científica e racional com a biologia, a psicologia e a sociologia”.

Foucault via o humanismo como uma invenção recente e ilusória: “Imaginamos que, ao mesmo tempo, o humanismo tem sido a grande força que animou o nosso desenvolvimento histórico e que é finalmente a recompensa desse desenvolvimento, resumidamente, que é o princípio e o fim. O que nos admira na nossa cultura atual, é que ela possa ter a preocupação com o humano. E se falamos de barbárie contemporânea, é na medida em que as máquinas, ou certas instituições, nos aparecem como não humanas. Tudo isso é da ordem da ilusão”. As máquinas trariam a desumanização (embrutecimento) ou a des-humanização (redefinição do lugar do homem no mundo)? Os movimentos atuais antiespecistas, sustentados por filósofos como Peter Singer, defendem a autonomia dos animais. Por outro lado, há quem postule, como Bruno Latour, um “parlamento das coisas”. Coisas e animais em pé de igualdade com o homem? Dessacralização do humano ou acerto de contas com o exagero?

Para Michel Foucault, o humanismo teve o seu tempo: “Primeiramente, o movimento humanista data do fim século XIX. Em segundo lugar, quando se olha ligeiramente as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem literalmente nenhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamente também pelo corpo, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem mesmo é completamente ausente”. Destronado, o Homem torna-se homem, uma espécie entre tantas outras e precisa enfrentar perigos recorrentes, entre os quais a maquinização do mundo. A ascensão das máquinas desumaniza ou des-humaniza? Liberta o homem do fardo do trabalho ou precariza a sua vida? Abre espaço para uma reinvenção do humano ou para sua exclusão?

Bruno Latour, em entrevista para o Caderno de Sábado do Correio do Povo, mostrou-se tranquilizador: “Não creio realmente na autonomia das máquinas. Trabalhei muito em pesquisas sobre tecnologia. Sempre que me mostram um instrumento automático sei que por trás dele existem muitos seres humanos, a começar por engenheiros. No filme Metrópolis, de Fritz Lang, o robô sente calor e precisa ser refrescado. Era uma pessoa. Por trás das máquinas sempre há humanos. É incontestável”. Há algo incontestável neste nível de mutação acelerado? Latour não crê em des-humanização pelas máquinas: “Para que um robô seja automático é preciso muita gente por trás dele. Insisto nisso. Trata-se de uma rede de sustentação entre o humano e a máquina. Eliminar o trabalho de caixa de supermercado é uma bendição, pois se trata de uma atividade desagradável”. Ele acredita que velhas atividades desaparecem com a evolução tecnológica, surgindo outras para lugar delas. Os dispensados terão de reinventar-se para aproveitar as novas oportunidades.

Com seu discurso otimista, Latour não vê um futuro de embrutecimento nem de distopia: “Fundamental é que as máquinas não vão substituir os seres humanos. Isso é uma utopia completa. Mas as máquinas vão liberar as pessoas de muitas tarefas. Por exemplo, de dirigir automóveis e de trabalhar como motorista de táxi. O futuro dos humanos ou os empregos que terão é outro problema. Isso não elimina o fato de que sempre haverá seres humanos por trás das máquinas. Os economistas estão divididos quanto aos números, mais ou menos empregos. Certo é que os novos empregos não são geralmente para as mesmas pessoas desempregadas pela tecnologia. As transições são duras e penosas. Nos laboratórios japoneses, por trás de cada robozinho, há muitos engenheiros. Só tempo nos dirá como as coisas se resolverão”.

 

3.  Pós-humano

 

A tranquilidade de Bruno Latour não ecoa no pensamento do historiador israelense Yuval Harari. Ele prevê um amanhã dominado por uma casta de super-humanos e povoado por bilhões de seres irrelevantes destinados unicamente a consumir como, se a imagem não for brutal demais, frangos num aviário: monitorados, alimentados, controlados. A “revolução humanista” de que ele fala mira a imortalidade. Para quê?

O que acontecerá com o mercado de trabalho quando a inteligência artificial suplantar humanos na maioria das tarefas cognitivas? Qual será o impacto político de uma nova classe massiva de pessoas economicamente inúteis? O que vai acontecer com os relacionamentos, as famílias e os fundos de pensão quando a nanotecnologia e a medicina regenerativa transformarem os oitenta anos nos novos cinquenta? O que acontecerá com a sociedade humana quando a biotecnologia nos permitir ter bebês projetados e abrir abismos sem precedentes entre ricos e pobres”. Ainda seremos humanos? O pós-humano é simplesmente ter uma prótese, um marcapasso, um chip no corpo? Ou é a superação da velha humanidade baseada no trabalho e na reprodução?

Harari parece divertir-se com os espectros da des-humanização: “Os principais produtos do século XXI serão corpos, cérebros e mentes, e o abismo entre os que sabem operar a engenharia de corpos e cérebros e os que não sabem será muito maior do que aquele entre a Grã-Bretanha de Dickens e o Sudão de Mahdi”. As suas perguntas inquietam na medida em que “economistas predizem que, cedo ou tarde, humanos não melhorados serão completamente inúteis. Eis a terrível questão: “O que vai acontecer quando algoritmos nos suplantarem nas ações de lembrar, analisar e reconhecer padrões?” E na arte de compor músicas, de escrever poemas e de votar?

Ainda seremos humanos? Pós-humanos? O que seremos se Harari estiver certo e um dia “ricos e pobres estiverem separados não apenas pela riqueza, mas também por brechas biológicas reais? (p. 349). Colocado nesses termos parece assustador. Poderíamos dizer, parafraseando Bruno Latour, que nunca fomos humanos? Ou deixamos de sê-lo quando ampliamos nosso corpo e nosso cérebro com artifícios, ferramentas, elementos externos à natureza e à nossa animalidade? A tecnologia conseguirá tornar-mais pós-humanos mais avançados em relação à nossa condição humana primitiva ou selará o nosso destino, sepultando o nosso passado animal numa des-humanização definitiva?

 

 

4.  Transumano

 

Avançamos para uma “revolução cognitiva” que nos fará mais humanos do que nunca, super-humanos, humanamente melhores, hiper-humanos, mais humanos do que os humanos, desumanos, inumanos, des-humanos? Talvez a resposta mais precisa neste momento seja: não sabemos. Vamos transformar integralmente nossos corpos trocando sempre que necessários órgãos estragados? O que restará em nós de natural? Antes de votar um algoritmo calculará para nós que candidato oferece mais chances de corresponder aos nossos ideais? Usaremos aplicativos para escolher as melhores rimas quando tivermos vontade de escrever um poema? A ciência, enfim, vai nos libertar de nossas misérias humanas?

Se o existencialismo era acusado de só ver o lado negativo da vida, se o humanismo tradicional hierarquizava as espécies, permitindo que o homem devorasse sem crises de consciência animais domesticados por ele, o transumanismo des-humaniza para, em princípio, melhor humanizar, integrando o homem no seu universo e ampliando o seu horizonte de possibilidades, fazendo-o viver mais, ver melhor, sentir mais profundamente, experimentar sensações inusitadas e pensar com ajuda de máquinas. Homem-robô? Homem robotizado? Homem transfigurado? Talvez fosse o caso de escrever para Heidegger: Carta sobre o Pós-humanismo? Ou Carta sobre o Transumanismo. Para dizer o quê? Possivelmente que a essência do homem não é humanista, assim como a essência da técnica, conforme a célebre fórmula, não é técnica.

Se há vantagens, como viver mais e melhor, também há perigos: em lugar de des-humanizar, desumanizar. Em vez de emancipar, embrutecer. Ao invés de criar uma utopia tecnológica, parir uma distopia, uma nova barbárie com ajuda da ciência, um mundo em que o homem seria dispensável. Esses conceitos encontram diferentes abordagens de acordo com os autores e as visões de mundo, mais ou menos sofisticadas, pessimistas ou otimistas, tendo em comum um aspecto: a inevitabilidade. Não se barra o caminho da novidade tecnológica. O que pode ser, será. A criatura até hoje não devorou o criador. Poderá fazê-lo por outro caminho: fazendo do homem um homem-máquina? Pode o homem preferir outro destino? Sartre escreve7: “Não é verdade que o homem tenha liberdade de escolha no sentido em que, através da escolha, ele confere à sua atividade um significado que ele não teria de outro modo”. O que escolhemos de fato ao longo do tempo?

Pode-se admitir que escolhemos em parte, mas somos empurrados para bifurcações que condicionam as nossas opções e não nos deixam voltar atrás. Um intelectual que não pega bem citar hoje em dia, certo Karl Marx, já dizia: “São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias, etc., mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar”. Escolheremos a des-humanização que nos colocará no devido e modesto lugar no universo, respeitando as demais espécies, ou afundaremos na desumanização que ajudamos a criar com nossa inteligência, nossa ciência e com os efeitos perversos imprevistos da robotização?

Reconhecer os direitos das outras espécies não é ainda um ato de antropocentrismo na medida em que só o homem pode fazer isso? Estamos condenados a algum grau de especismo pelo fato de sermos os únicos a ter consciência de ser o que somos e capacidade de reflexão sobre o nosso estar no mundo? Ainda que nunca possamos nos livrar de algum antropocentrismo, passar da condição moderna de dominadores da natureza ao reconhecimento de que somos uma minúscula parte dela faz uma diferença ontológica. Humanos, muito humanos, mas não o bastante para nos sentirmos a espécie eleita. O futuro surge como uma metamorfose. Haverá alguém para defender o humanismo como o fundamento de toda verdade e toda ação moral e eticamente autojustificadas? O tempo do antropocentrismo triunfante parece ter ficado para trás.

 

 

Bibliografia

Harari, Yuval. Homo Deus. São Paulo: Cia das Letras, 2016.

Heidegger, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

Latour, Bruno. Entrevista com Juremir Machado da Silva. “O objetivo da ciência não é produzir verdades indiscutíveis, mas discutíveis”. Caderno de Sábado, Correio do Povo, Porto Alegre: 17 de março de 2017.

Foucault, Michel. “O homem está morto?” Entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38, 15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. I., p. 540-544, por Marcio Luiz Miotto. Revisão de wanderson flor do nascimento. Disponível em http://files.philoethos.webnode.pt/200000088-eb4beeba68/homemmorto.pdf

Sartre, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes, 2014.

Singer, Peter. Libertação animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.

 


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