Imagens do medo em Porto Alegre

Imagens do medo em Porto Alegre

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É sabido que o medo assume formas diferentes conforme as épocas e os lugares. O medo supremo talvez consista em ter medo de confessar que se sente medo com medo de sofrer represálias. Pais temem perder um filho ceifado pela violência que assola cidades como Porto Alegre. Cada saída é uma aventura. Voltará? Cada violência gera um trauma. O maior medo por algum tempo é o de sofrer novamente a agressão insuportável. Tomei conhecimento de uma forma de medo insuperável.

– Medo de tentar saber.

– Saber o quê?

– Se a pessoa foi morta.

Um pai, uma mãe, uma avó, enfim, quer saber se o filho ou o neto, que saiu de tarde e não voltou, está vivo. Teme-se o pior. O tempo passa, a noite avança, o pavor toma conta, a morte paira sobre os espíritos. Que providência tomar? Procurar nos hospitais da cidade? Com que dinheiro? Ir à polícia? De jeito nenhum. Eles podem não gostar. Quem são eles? Os donos do pedaço. O que fazer então? Nada. Cada um pode imaginar a ansiedade, a angústia, o desespero, a agonia.

Pensemos numa velha senhora que já perdeu cinco filhos e quatro netos para a violência. Ela espera no seu casebre. Ela sabe, por experiência, que o desfecho não deve ser bom. Quase nunca termina bem. Ela reza, fecha os olhos, tenta esquecer, tenta dormir um pouco, tenta se distrair, iludir, enganar, acalmar, esconder-se de si mesma e das suas péssimas lembranças. Gostaria de matar suas recordações. Tanta gente sem memória por aí. Ela lembra de tudo tintim por tintim. Restam alguns créditos no cartão do celular. Arrisca um ou dois telefonemas que em nada resultam. A angústia volta, dispara, acelera o coração, o tempo não passa, a noite não avança, a escuridão se intensifica apesar da luz acesa e dos olhos queimando sem lágrimas. A dor parece maior quando não se consegue chorar. O choro é interno.

A alma inundada.

Assim vai ficar até o amanhecer. Não dormirá. Não chorará. Não deixará de pensar. Viverá mais uma noite sem fim. Como são longas as noites em que se espera uma notícia de morte. Lembra do neto. Passa um filme na sua mente. Ela o vê pequeno, hesitante. Ele inventaria os seus medos, problemas, fragilidades, esperanças. Ela o vê crescer. Ela se comove. Ainda assim, não chora. Foi assim nas outras vezes. A vida deu-lhe uma secura. O que faz agora? Como espera saber? Em quem pode confiar? É aí que na simplicidade da sua vida tudo se revela cruelmente inacreditável. Só há uma coisa a fazer sem correr riscos. Uma coisa tão óbvia que espanta quando confessada num quase sussurro.

– Esperar?

– Sim, esperar.

– Sem fazer nada?

– Fazendo o que dá, o que a gente pode fazer, o que temos.

– O que mesmo?

– Escutando rádio.

– Como?

– A gente escuta o rádio. Eles sempre dão a notícia.

 

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