Inimigos do povo

Inimigos do povo

Literatura em tempos de medo

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      Muito se fala, em tempos de pandemia, sobre dois grandes livros, “A peste”, de Albert Camus, e “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Para quem é corajoso e não teme ficar deprimido, o que não é o meu caso, vale ler ou reler a famosa peça de Ibsen, “Um inimigo do povo” (L&PM), e um pequeno romance de Paul Auster, “No país das últimas coisas” (Best Seller). O norueguês Henrik Ibsen escreveu o seu texto em 1882. O norte-americano Auster publicou o seu livro em 1987. De que tratam? Por que podem nos ajudar a refletir sobre a atualidade?

      Ibsen concentra a sua história no médico, Dr. Stockmann, de uma cidade balneário. Ele descobre que as águas locais estão poluídas e, apesar do prejuízo à economia do lugar, não aceita se calar. Choca-se com os donos dos curtumes e com todos os que vivem do turismo. Por insistir na verdade, fica isolado.  Vira um pária. Em determinado momento, o prefeito diz: Em suma: em nossa cidade reina um belo espírito de tolerância, que é o autêntico espírito de cidadania. Deve-se isso ao fato de termos um interesse em comum, que nos une a todos – um interesse pelo qual todos os cidadãos honrados têm igual preocupação”. Quando toma conhecimento de um artigo escrito pelo seu irmão, o médico, denunciando o estado das águas, o prefeito tenta convencer o diretor do jornal a não publicar o texto. Eis o rolo.

      Se o tom de Ibsen é do mais duro realismo, o de Paul Auster mergulha no desespero hiperbólico do pós-apocalipse com certo surrealismo. Como sobreviver numa cidade depois do ocaso da civilização? É cada um por si diante das múltiplas possibilidades de morte: “Estas são as últimas coisas, escreveu ela. Uma a uma, vão desaparecendo para nunca mais voltar. Podia lhe falar nas que vi, nas que já não existem, mas duvido que haja tempo. Tudo vem acontecendo muito depressa, já não consigo reter os fatos. Não espero que compreenda. Você não viu nada disso e, mesmo que tentasse, não conseguiria imaginar. São as últimas coisas”. A normalidade desaparece. Todos nós podemos, em algum grau, imaginar essa metamorfose. Agora, podemos. Já não somos os mesmos nem vivemos como nossos pais. Ficamos para sempre adultos ou voltaremos a viver?

      Existe algo que poderíamos, ressoando Nietzsche, chamar de “vitalismo do rebanho”. Essa vontade de viver a qualquer custo que leva cada um a desdenhar o perigo. Se a “imunidade do rebanho” não chega, resta tentar controlar o seu oposto. Ibsen falava do que deveria ser prioridade, a economia ou a vida. Auster aborda o pós-tudo, quando já não há o que fazer, salvo tentar sobreviver. Pode-se preferir o “vitalismo do rebanho” ao pragmatismo do dinheiro, que não deve ser confundido com a necessidade de ganhar o pão. Ibsen e Auster são chocantes neste momento de estupor. Por enquanto, estamos mais próximos do imaginário do norueguês. Até quando será assim?

*

Essas vozes vindas de longe

Me dizem coisas tão próximas

Sobre esse passado presente

Que ecoa como um bronze ao anoitecer.

 


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