Já vai tarde, 2020

Já vai tarde, 2020

O ano que nem começou

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      Confesso que odiei o ano de 2020. Estou vivo. Isso já salva a lavoura. Estou vivo, junto com a Cláudia, conectado com a família e com os amigos e isso já é uma grande colheita. Como lembraremos de 2020? Como o ano da peste, o ano do vírus, o ano da pandemia, o ano dos prejuízos, das sequelas, das perdas, dos danos e do desespero. Ano em que se morreu por falta de respirador e de leito em UTI. Admirei médicos e pessoal da saúde. Tive raiva de quem anda sem máscara na rua, de quem se aglomera e de quem faz festas clandestinas. Como gostaria de brindar à chegada de 2021? Com um tim-tim de vacinas.

      Em 2020, reaprendi a odiar. Quem? O ano. Vi gente sofrendo, gente lutando, gente sendo solidária, gente praticando grandes gestos, mas vi também gente indiferente, zombando, minimizando a doença, relativizando, mentindo e pregando contra o bom senso e a ciência. Aprendi que se pode cair fazendo o melhor e manter a popularidade pregando o pior. O que mais me desgostou? Comemoração de suposto fracasso de vacina. Quem ganha com a possível baixa proteção de uma vacina? O país? As pessoas? A vida? A humanidade? O amor? Odiei a politização da doença e da vacina que poderá nos devolver a normalidade. O que espero de 2021? Vacina para todos e solidariedade.

      Deliro? Sim. O egoísmo prova a cada dia que é o sentimento mais bem distribuído entre os humanos ao longo da história. O ano de 2020 não deixará saudades em mim. Sempre pode ser pior? Certamente. A esperança no melhor não morre. Este 2020 já vai tarde levando as suas mais de 190 mil mortes por coranavírus no Brasil, arrastando também as suas vítimas de feminícidio, racismo, homofobia e fanatismos diversos.

O que entregaremos ao futuro,

Um mundo maduro e sem poetas,

Um arenoso deserto de imagens,

O homem na plenitude do escuro?

 

Não sei as respostas que me espreitam,

Sei que fui menino numa foto desfeita,

Colhia frutas vermelhas na mata espessa,

Via a curva do arroio como um aguaceiro,

Cada raio de sol me acendia um vespeiro.

 

A infância é que me recebe na velhice,

Um lençol de águas numa vazante estreita,

Fantasmas, cavalos, pandorgas, vogais,

E os meus sonhos pendurados em varais.

 

Colecionei espantos, medos e lápis de cor,

Aos que vieram depois de mim ficará o luar,

Essa abstração da luz na imensidão da noite,

E a certeza de que só matei aula para voar.

 

Nunca perdi a esperança de aprender:

Aprender a escrever um grande poema,

O poema da humanidade reconciliada,

Começaria assim: era uma vez o amor.

Sou um romântico pós-moderno e pré-eterno.

Para 2021 – O que o Brasil precisa para ser melhor no ano que vai começar (termina um, começa outro, sem intervalo comercial)? Menos desigualdade, mais eficácia administrativa, menos politicagem, mais republicanismo, menos interpretacionismo interesseiro, mais respeito à Constituição, menos extremismo, mais socialdemocracia (o problema é que por aqui até a socialdemocracia é neoliberal), menos impostos regressivos, mais justiça tributária, menos isenções para os poderosos, mais oportunidades reais de trabalho e negócios, menos fanfarronice presidencial, mais vacinas, menos generais, mais gerais.

      A rede vencedora é esta: democracia – educação/ciência – liberdade econômica – justiça social. O resto é oportunismo. O ciclo da extrema direita, que dá sinais de esgotamento com a derrota de Donald Trump (já vai tarde também!) preferiu outra cadeia: democracia iliberal – anticientificismo/antiintelectualismo – precarização das relações de trabalho – injustiça social. Claro que tudo isso como uma contradição permanente: os Estados Unidos são uma potência científica e intelectual. Os freios e contrapesos da democracia americana impediram que Trump consumasse a sua tendência autoritária explícita.

      A base do sucesso de uma sociedade aberta chama-se pluralismo. Só onde viceja o pluralismo – a diversidade de vozes – reina a grandeza, com a perdão do tom enfático. Há países com bom rendimento econômico e déficit de pluralismo. Maus exemplos. O século XXI ainda busca a sua alma: democracia, liberdade econômica e justiça social. Nem a extrema esquerda nem a extrema direita parecem capazes de realizar essa utopia. O êxito não está na uberização do mundo. Nem na venezuelização. Tampouco no trumpismo e suas variações. Feliz 2021!

Uma noite, quando a alma do vinho

Já cantava nas garrafas,

Eu lancei minhas tarrafas,

Ao mar. E tomei o meu caminho.

 

 


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