João Saldanha queria barrar Pelé

João Saldanha queria barrar Pelé

Documentário mostra Pelé mais soberano do que nunca

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      O documentário “Pelé”, dos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas, mostra o “rei do futebol” de cadeira de rodas e andador. Exibe também a incapacidade do ex-jogador para fazer um comentário político sobre a ditadura que serviu de cenário à parte do seu tempo de glória. O abraço do jogador no ditador Médici, o mais extremista dos governos militares, continua constrangedor. As passagens mais interessantes, contudo, são do campo esportivo mesmo. Uma velha polêmica ressurge com depoimentos esclarecedores. João Saldanha perdeu o cargo da técnica da Seleção antes da Copa de 1970 por uma razão imperativa: queria barrar Pelé. O próprio Saldanha admite, em tom de lamento, que era impossível se livrar do atleta. Na tentativa, espalhou a fake news de que Pelé estava com problemas de visão.

      É verdade que Saldanha desafiou Médici dizendo que não escalava ministros e, portanto, não aceitava que o general escalasse o seu time. Mas não era só que o ditador queria Dario. Saldanha não queria Pelé. Por quê? O técnico queria modernizar o Brasil. Jogar como europeus. Nada muda no futebol. Na época, discutia-se futebol bem jogado, com desempenho, e resultadismo, marcação forte e brilho individual, esquema tático e improvisação. Especialistas já faziam previsões precipitadas. Pelé, antes da Copa do México, era dado como liquidado. Não teria mais a mesma intensidade nem a mesma condição física. Tudo conversa fiada. No filme, Pelé diz que João Saldanha não entendia de futebol. Companheiros sugerem o mesmo. Fica assentado que ajudaram a derrubar o treinador para salvar o time e ficar com Pelé.

      Zagallo assumiu, tranquilizou Pelé, fez algumas improvisações, melhorou muito a equipe e salvou o país da vira-latice de Saldanha, que aparece dizendo a um entrevistador europeu “nós podemos jogar como vocês”. Ninguém jogou até hoje futebol como Pelé. Messi e Cristiano Ronaldo são ótimos jogadores, mas não fizeram dez por cento do que Pelé realizou. O brasileiro chutava bem com os dois pés, cabeceava, driblava, passava, lançava, cobrava falta e recompunha. Apanhava, como Neymar apanha hoje, e chegava a ser culpado por se lesionar. Ninguém fez o que Pelé fez, aos 17 anos, em final de Copa do Mundo. Ninguém participou de três campanhas vitoriosas de copas do mundo. Tudo isso é sabido, salvo por quem pensa que a revolução do futebol começou quando a Liga dos Campões passou a ser chamada por nós de Champions League.

      Os neotáticos de hoje são os vira-latas de ontem. Quando alguém diz que, no futebol, o coletivo deve se sobrepor ao individual, simplifica. Quando diz o oposto, também simplifica. O Brasil de 1970 era um composto de coletivo e genialidade individual. Nenhum coletivo pode prescindir de Pelé, que não podia jogar sozinho, mas era meio time. Os três maiores gênios brasileiros são negros: Aleijadinho, Machado de Assis e Pelé. Só o primeiro teve consciência política. Os profetas do adro da igreja de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, são os inconfidentes disfarçados, como mostrou a historiadora Isolde Helenas Brans Venturelli. Pelé não é profeta. Foi deus do futebol. Pelé já se vacinou contra a covid e recomedou que as pessoas se protejam. O rei está do lado certo.

 


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