Juliette Gréco, símbolo de uma época

Juliette Gréco, símbolo de uma época

Morreu a musa do existencialismo

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      Morreu, aos 93 anos de idade, Juliette Gréco. Os mais jovens perguntarão com enfado: quem era? O enfado, imortalizado na filosofia como tédio, afeta mais a juventude. Meu amigo Luís Gomes, editor da Sulina, me anunciou a morte de Juliette. Luís tem alma de francês, o que se vê na sua preferência por vinhos e queijos, e cultura existencialista. Poderia ter bebido nos cafés de Saint-Germain-des-Prés com Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Juliette, cantora e atriz, musa desses anos em que havia programas de rádio só de poesia. Filha de resistentes ao invasor nazista, ela foi presa pela Gestapo e teve a mãe deportada. Uma história de filme, de teatro e de coragem.

      Ouvir Juliette cantando “Folhas mortas”, de Jacques Prévert, é algo sublime que os tempos de pandemia e de mediocridade não conseguem sufocar: “Oh! Eu quero tanto que você se lembre/Os dias felizes quando nós éramos amigos/Naquela época, a vida era bela/E o sol mais quente que hoje”. Quantos dos meus leitores mais experientes, que a velhice é uma invenção dos cartórios, não terão algum dia embalado sonhos escutando a bela Juliette esquentar gravemente os corações? Tenho saudades desses tempos que não vivi. Só me resta reler os existencialistas. Como não se emocionar com estes versos: “As folhas mortas se recolhem com pá/Lembranças e arrependimentos também”.

      Eu carregaria um caminhão com pá se decidisse recolher minhas lembranças, meus remorsos e meus arrependimentos. Um dia, farei isso. De que me arrependo mais? Certamente de não ter fugido para a África como Rimbaud onde poderia ser traficante de poesias e de memórias. Eu me arrependo também de não ter me mantido jovem por mais tempo. É que eu não suportava o tédio necessário a uma juventude sadia. Queria ter logo cabelos grisalhos para me sentir ao abrigo das certezas. Muitos certamente ouviram Juliette Gréco em “Bom dia, tristeza” (1958), filme baseado na obra da desconcertante e rica Françoise Sagan, dirigido por Otto Preminger, com a linda Jean Seberg num dos papéis principais.

      Eu me arrependo de não ter dito antes que um dos melhores livros dos últimos tempos, entre os tantos que li, é “Ideias para adiar o fim do mundo”, do líder indígena Ailton Krenak, que ganhou o prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, como intelectual do ano. O livro é minúsculo. As ideias, grandiosas. Uma pergunta dele me faz acordar de madrugada: “Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras?” Eu deixaria um pacote contendo todas as canções interpretadas por Juliette Gréco, a musa da “rive gauche”, a estrela da margem esquerda do Sena, a sua voz.

      Meu amigo Leandro Minozzo me presenteou (ou me emprestou?) “A barata”, de Ian McEwan. É a suave história de uma barata que vira primeiro-ministro. O ministério, salvo um dos integrantes, também é tomado por esses insetos revolucionários. Eles aplicam o “reversalismo”, uma política econômica que inverte o fluxo de dinheiro. Em vez de receber, paga-se. Li ouvindo Juliette. Revirei-me.


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