Laço social e tecnologia em tempos extremos

Laço social e tecnologia em tempos extremos

O que nos uniu no ano da pandemia

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Rede pesquisa

Produto de uma rede internacional de pesquisa em Comunicação, a Rede Jornalismo, Imaginário e Memória (com integrantes da PUCRS, Universidade Montpellier III, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal de Juiz de Fora), “Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia” (Sulina) discorre sobre as mutações culturais em curso em tempos de isolamento e insegurança.

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      Em “A transparência do mal”, Jean Bdrillard consagrou o conceito de “fenômenos extremos” (1990). O tempo é um deles. A questão que de pode colocar tem uma densidade imediata: como o tempo se torna um fenômeno extremo? É possível desqualificar este começo citando uma das melhores frases de Borges: “Nós homens das diversas Américas permanecemos tão incomunicáveis que apenas nos conhecemos por referência, contados pela Europa”. Cabe lembrar que o próprio Borges era um europeu disfarçado de argentino. O extremo ocorre quando tudo se multiplica por contaminação, lógica epidêmica que pode se transformar em pandemia. Aquilo que se divide incessantemente, sem precisar nem sequer se alimentar ou respirar, viraliza. Quase-vida.

      As fakenews são viróticas. Elas não se alimentam, apenas alimentam ou reatroalimentam um organismo em decomposição. Baudrillard via nesse imaginário da incontinência uma metástase social. Passamos agora da metáfora do câncer definitivamente para a figura do vírus. São dinâmicas diferentes e expectativas aleatórias. Se, como imaginava o pensador francês que passara do marxismo estruturalistas ao niilismo ou paroxismo indiferente (ou paradoxismo), havia quatro estágios do valor:  valor de uso, valor de troca (mercado), valor signo (tudo circula, tudo comunica, mas para dizer o quê?) e estágio viral, pelo qual tudo se irradia sem retorno nem direção planejada, podemos imaginar um quinto estágio, mais extremo do que o extremo, hiper-extremo: o estágio de manipulação por algoritmo ou estágio da inteligência artificial persuasiva. Uma das suas fases é cancelamento: tudo se neutraliza e anula. Seu outro nome: capitalismo de vigilância.

      Por muito tempo, o valor de uso manteve-se como um sinal da relação com a natureza. A pergunta que se podia fazer era simples: para que serve? O estágio do valor de troca, regido pela mercadoria como organizador social, alterou a pergunta para: quanto custa? No valor-signo, a questão ficou mais abstrata: quais os significados? Na etapa viral ainda era possível perguntar algo assim: para onde vai? No tempo extremo do cancelamento, quando até a língua natural encontra o seu limite, a pergunta ganha uma dimensão singular: a quem serve? Existe valor de uso, de troca, de signo e viral, mas tudo pode ser anulado por uma ameaça extrema e invisível que aniquila os sentidos.

      Depois da liberação total e da ressaca da liberação sobreveio um contrafluxo. Segundo Baudrillard, “o máximo de reprodução com o mínimo de sexo”, contrariando a ideia liberatório do máximo de sexo com o mínimo de reprodução. Mínimo de Estado para o máximo de economia. O que devia ser reproduzir era o valor dinheiro, seguindo as metas e exigências de performance, conforme uma tabela progressiva ou regressiva de ganhos e impostos. No estágio do cancelamento, quando o vírus ainda não pode ser cancelado por uma vacina, podendo, quem sabe, se reinventar em infinitas cepas para escapar a toda neutralização, a reprodução se concentra em três pontos: do medo, da busca de uma solução rápida e do próprio vírus, que é signo de si próprio e não se deixa trocar pelo que quer que seja. Também não tem valor de uso.

      Com todos os campos infectados, da política à arte, ainda conforme Jean Baudrillard, o ideal extremo de superação permanente como negócio rentável ainda era alcançável. Pode-se suspeitar que no estágio do cancelamento a análise do filósofo perca a sua resiliência. Já não pode se adaptar ao inesperado. O vírus está no comando. A perda de controle passou pela Aids, avançou com a SARS e consumou-se com o Coronavírus. Toda expectativa se comprime. A lei que resta é da sobrevivência por subtração. Contra ela se levanta um vitalismo desesperado que faz de cada dia uma escalada louca do Everest.

 

Redes têm dilemas?

 

      Entramos, sem perceber e talvez sem quer saber, numa nova fase da relação com a tecnologia: o produto somos nós. As plataformas vendem a nossa atenção para os veiculadores de propaganda. O algoritmo está no comando. Manipulação por contágio de massa. O Facebook é a melhor ferramenta para dominar um país. Só as cadeias da droga e da tecnologia chamam seus clientes de usuários. Cada um recebe a sua dose de realidade e de fatos particulares. Nada é comum a todos. Nem sequer a nós e nossos vizinhos ou familiares. O compartilhamento é uma ilusão. Tudo funciona para gerar bolhas. A polarização não é o produto de uma situação social, mas a sua causa. Ela é geradora de engajamento. Como dizia Baudrillard, “não há mais utopia da comunicação” ainda que o silêncio tenha sido “banido das telas”.

      Um fragmento dessa distopia, consumida como uma droga leve, aparece em “O dilema das redes”, documentário produzido para a Netflix. Ex-funcionários de alto escalão de gigantes quase mágicos como Google, Twitter, Facebook, Instagram, Pinterest, Firefox e outros contam não o que viram nos subterrâneos dessas máquinas de sedução e dominação, mas o que ajudaram a fazer conosco. A epígrafe, uma frase de Sófocles, diz tudo: “Nada entra na vida dos mortais sem uma maldição”. Qual é a maldição das redes sociais? A dependência que provocam. Uma adição programada por gênios da informática de modo as explorar nossas “vulnerabilidades mentais”. Meninas passam a sofrer de “dismorfia de Snapchat”. Querem se submeter a cirurgias plásticas para se parecer com suas imagens retocadas por filtros de aplicativos. 

      Tristan Harris, ex-diretor de Design Ético do Google, revela como se dá a magia dessa dependência por meio da qual 50 designers, situados na Califórnia, todos entre 20 e 35 anos de idade, decidem como mais de dois bilhões de pessoas verão o que veem nas suas telas. Essas decisões não são inocentes, pois no estágio da manipulação por algoritmos não há mais inocência, salvo como filtro em cor nostálgica. Tim Kendall, ex-diretor de monetização do Facebook, acrescenta o óbvio e há revelação nesse óbvio: tudo é feito para a vender nossa atenção aos que pagam para divulgar as suas propagandas. A vertigem não para: design ético, diretor de monetização, etc. Nem sabíamos da existência desses postos de trabalho da nova economia virtual e cognitiva.

      Uma verdade inesperada aparece: “Se você não pagando pelo produto, o produto é você”. Não existe gratuidade na Internet. Jaron Lanier, autor de um artigo desconcertante, “Maoísmo digital”, explicar o negócio de supostas ferramentas ou plataformas como Facebook: mudar a nossa percepção. Simples assim. Dominar a nossa consciência. Umberto Eco havia advertido nos anos 1960 que para dar um golpe de Estado já não bastava tomar o palácio de um governo nem os estúdios da principal emissora de televisão. Só o sofá de cada telespectador poderia garantir um controle eficaz de cada recepção. Roger McNamee, alto investidor em tecnologia, sepulta a ingenuidade de Eco: a melhor maneira de controlar um país atualmente é através do Facebook. Myanmar faz isso. O consumidor sai da loja com Facebook no celular. Os mecanismos de recomendação podem moldar as escolhas de toda ordem.

      As imagens já não funcionam como ícones. Não há referencial em algum lugar. Sandy Parakilas, do Center for Humane Technologiy, Justin Rosenstein, ez-programador do Google, e Jeff Seibert (ex-Twitter) desembalam o pacote todo: o Facebook não quer vender nossos dados. Precisa deles para criar modelos que prevejam nossas reações. A Internet é uma grande fake news. Tudo o que se busca é criar engajamento, conquistar usuários e mostrar propaganda. Os algoritmos trabalham para manter cada usuário conectado o mais longo tempo possível, vendo o que lhe é recomendado. Lanier ensina que o significado da cultura agora se chama manipulação. Mentes vulneráveis, tecnologias persuasivas, transformação comportamental, engenharia de transformação psicológica, experimentos de contágio em larga escala, tratamento do humano como se fossem células nervosas de uma aranha. Todos somos cobaias. Os depoimentos sucedem-se. Os nomes também: Jean Toscana, Sean Parker, Shoshana Zubofh. Psicólogos, especialistas de diferentes campos, pontos de vista inquietantes. Nada é o que se vê.

      Queremos aprovação social a cada cinco minutos. Precisamos liberar dopamina. Não nos comunicamos. Pedimos recompensa. As redes sociais, drogas tecnológicas, viciam e não aceitam recusa. Não estar no jogo equivale a ser proscrito da modernidade, objeto de escárnio, vítima de bullying dos encantados pela “chupeta digital”, conforme a expressão de Tristan Harris. Na guerra entre o indivíduo e os supercomputadores, alerta Roger MaNamee, só pode ter um vencedor. Quem mesmo? “A briga não é justa”. Perdemos o controle: “Cada pessoa tem sua própria realidade, com seus próprios fatos”. A cada um conforme as suas necessidades de manipulação. Seibert explica a “aprendizagem de máquina”. A Inteligência Artificial, que já domina o mundo, fica sempre mais inteligente e mais dominadora. Baylen Richardson (Instagram) lacra: “Os algoritmos têm vontade própria”.

      Polarizar gera engajamento. Leia-se, gente conectado seguindo recomendações e vendo propaganda. Guillaume Chaslot (YouTube) revela que vídeos sobre o terraplanismo foram recomendados infinitamente por um algoritmo. A divisão e o falso geram interesse e dão lucro. O sociólogo francês Dominique Wolton, menosprezado pelos tecnófilos desde os anos 1990, tinha razão: entramos na era das bolhas. No seu “Elogio ao grande público”, Wolton já defendia a televisão aberta contra as bolhas da segmentação da televisão a cabo. Em “Internet, e depois?”, ele pedia regulamentação, não acreditando na autorregulamentação proposta pelas empresas do Vale do Silício.

      Edward Tuffe sintetizou: só a indústria das drogas e a das tecnologias chamam seus clientes de usuários. O falso interessa seis vezes mais do que o verdadeiro. Tristan Harris ressuscita Martin Heidegger, para quem a essência da técnica não era técnica. As ferramentas dos novos tempos, que não são como meras bicicletas, pois exigem coisas de nós afetam “a todos mesmo que você não use os produtos”. A essência da técnica é a manipulação da mente humana.

 

Transparência do mal

 

      Nenhuma hipótese, em tempos extremos, pode ser descartada de antemão: o documentário “O dilema das redes” pode ser apenas um amontoado de clichês com um roteiro descosturado e um pessimismo vendável. Não é improvável, porém, que apesar da sua fragilidade, ou justamente graças a ela, consiga tocar nos pontos mais sensíveis de uma realidade virtualmente incontestável ou realmente pouco contestada, ainda que essa contestação aconteça em ambientes bem delimitados, numa bolha crítica, num universo de autoconvencimento.

      Chegamos, segundo Jean Baudrillard, que não sofria nem se espantava com isso, contentando-se em enunciar ou anunciar a novidade como um velho sem ilusões ou sermões a dar, ao estágio da aceleração total de tudo, inclusive da arte, circulação viral de signos, que se multiplicam sem fazer sentido, destruindo todos os sentidos anteriores, nada colocando no lugar, salvo a nostalgia de um tempo em que havia um padrão-ouro do julgamento, mesmo se esse padrão era ilusório ou uma imposição que se apresentava como hierarquia objetiva. Não há mais, nesse sentido, troca simbólica e todos os gostos aspiram à mesma legitimidade, o gosto do consumidor que não pode ser desrespeitado, o gosto de cada um feito sob medida para todos.

      A modernidade prometia a emancipação do homem pela razão, pelo progresso e pela tecnologia. A pós-modernidade, amparada em pensadores da suspeita, como Nietzsche, considerou essa emancipação utópica, esse progresso perigoso e essa racionalidade apenas uma parte do jogo. O que dizer quando a tecnologia se apresenta como a última utopia, espaço virtual onde cada um se submete candidamente ao controle da máquina, como quando um aplicativo (Zoom, Streamyard) pede para gerenciar a conta do usuário no Youtube, no Twitter e no Facebook, podendo alterar os conteúdos da pessoa, para dar-lhe licença de fazer lives com os seus recursos de captação de imagem e de som. Como falar em emancipação e em autonomia pela racionalidade nesta época passional da submissão voluntária e do ódio disseminado nas redes sociais?

      O meio já não é a mensagem. O meio é o fim. Nas redes sociais não é o que se diz que conta, numa aceleração da sacada de Marshall McLuhan, mas evidentemente como se diz, quem diz e para quem se diz. Tudo deve ser visceral, com pegada, atitude, engajamento. O dito por uma celebridade conta mais do que o dito por um anônimo, mesmo que seja exatamente a mesma coisa ou a mesma platitude confessada em tom de revelação. Anônimos nada tem a confessar. Famosos podem confessar o que sentem e eles sentem exatamente o mesmo que os anônimos sem likes nem compartilhamentos. Quando todos comunicam não há mais necessidade de diálogo. Cada um grita ao mundo o que lhe dói e revolta. Pronto. Marshall McLuhan morre outra vez por radicalização da sua mensagem.

      Estetização total, gourmetização do cotidiano, novas embalagens para antigas mercadorias, novos produtos para antigos invólucros redesenhados, do desenho industrial ao design, da utilidade ao conceito, deste ao signo livre, o banal vendido como extraordinário, o fantástico do cotidiano revisitado a cada cinco minutos. Levantar a mão para parar um táxi equivale a rejeitar a revolução tecnológica pela qual se pega um carro para ir ao mesmo lugar pagando royalties a uma empresa estrangeira. Precarização contra precarização. Os taxistas, como os motoristas de aplicativos, não costumam gozar de proteção trabalhista. A vida como ela tem sido: implacável. Para que placas específicas quando todos podem ter o seu quinhão de perdas?

      Triunfo da mercadoria sem complexo no shopping central globalizado, ascensão ao poder supremo de Sua Majestade, o consumidor, unanimidade das marcas, única marca existencial consumada no consumismo, vitória do lúdico – a tela que fascina, o aplicativo que brinca, o dispositivo que parece mágico, o trabalho remoto tão próximo – sobre as asperezas do mundo mecânico refém de uma materialidade anacrônica e vivida como um sofrimento perpetuado até ontem. Extremo é o tempo que se comprime para tudo permitir, a distância que se anula, na qual a diferença é só uma rápida escolha binária entre 0 e 1. Apocalipse? De modo algum. Imunidade de rebanho. Na digitalização do mundo, a lei do valor é transformada em valor de lei: tudo que se quer é mais velocidade. A próxima ruptura tem nome: tecnologia 5G.

      Para Jean Baudrillard, que pensava o impensável como categoria utilitária, a mais bela imagem da antropologia do século XX poderia ser a de um homem, num dia de greve, sentado diante de sua televisão vazia, sem imagens. A imagem mais triste da antropologia do século XXI continua sendo a de uma criança, uma menina, enchendo a tela da televisão, num jornal da noite, contando que muitas vezes dorme com fome por não ter na sua família dinheiro nem para o pão. Seria isso o retorno do social como espectro rodando o futuro? O tempo é um fenômeno extremo que nunca para de se mostrar transparente.

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Prefácio de Michel Maffesoli

I – Laço social

Sós todos juntos: pele digital e fissuras digitais – Philippe Joron (MP3)

Ligações afetivas e emoções compartilhadas: a comunidadeemocional conectada – Fabio La Rocca (MP3)

O ambiente digital – Vincenzo Susca (MP3)

O animal midiatizado pelas imagense o paradoxo da empatia – Marianne Celka (MP3)

Repetição, alteridade radical e realidade desativada:a diplopia das imagens dos eventos-catástrofe – Bertrand Vidal (MP3)

II – Tecnologias e narrativas comunicacionais

Telejornalismo e pandemia: as narrativas emergentesem tempos extremos Christina Ferraz Musse e Mariana Ferraz Musse (UFJF)

A era dos tempos extremos: o ignorancialismo comocategoria de análise para a explicação da hipnoseregressista em curso  – Álvaro Nunes Larangeira (Rede JIM) e Tarcis Prado Júnior (UTP)

O limite da tecnologia não tão pessoal para uma geração:uma re exão sobre as transformações impostas ao público60+ durante o período de pandemia de 2020 – Eduardo Campos Pellanda e Melissa Streck (PUCRS)

Cinema, ciência e tecnologia: encontros, interseçõese experimentos – João Guilherme Barone Reis Silva e Roberto Tietzmann (PUCRS)

Além do deep fake e da empatia: observações sobre limitesdo uso jornalístico da realidade virtual  – André Fagundes Pase e Giovanni Guizzo da Rocha (PUCRS)

III – Imagens e imaginários

Mídia e imaginário em tempos extremos – Juremir Machado da Silva (PUCRS)

Jovens, gerações e tecnologias de comunicação: transformaçõesda rede sociotécnica em tempos extremos – Mágda Rodrigues da Cunha e Tiago Luís Rigo (PUCRS)

O populismo e suas tecnologias – Marco Roxo e Karina Santos (UFF)

 

 

 


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