Lei de improbidade esquartejada

Lei de improbidade esquartejada

Câmara dos Deputados votou sem fazer alarde

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      Descuidou, a boiada passa. A Câmara dos Deputados é um grande curral. Os parlamentares costumam esperar o povo cochilar para abrir a porteira. Gostam de ouvir o tropel enquanto o eleitor dorme. O principal lema desses boiadeiros é “meu pirão primeiro”. Na calada das sessões, sem passar agora por comissão ou audiência pública, por 408 votos a 67, os representantes da plebe representaram a si mesmos e sepultaram a lei de improbidade administrativa, tornando-a tão leve que ficou sem peso. Para condenar um gestor por improbidade será preciso provar a sua intenção de cometer a ilegalidade. Nada de puni-lo por omissão ou a tal da inépcia.

      A impunidade é um conceito sem data, que varia conforme os puníveis. Desta vez, parte da direita e parte da esquerda gritaram juntas: ninguém solta a mão de ninguém. Bolsonaristas e antibolsonaristas encontraram uma causa comum. Até o PT aderiu. Na contramão, PSOL, Novo e Podemos ficaram a contar navios enquanto muitos dos vencedores contavam os processos que abortavam. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, o rei do centrão, Arthur Lira (PP), é figurinha carimbada de investigações por improbidade e ainda conta três investigações em aberto. Nada como legislar em causa própria enquanto a galera vê a Copa América e tenta escapar do coronavírus. A turma votou de cara para o benefício.

      Arthur Lira e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não brincam no trabalho. Estão lá para defender interesses e fazem de cada carregamento uma oportunidade de negócios. Sabem que a boiada muge, parte da mídia grita, o tempo passa e tudo desaparece com a poeira dos dias e dos cascos da manada. Os defensores da mudança aprovada a toque de berrante alegam que não há estímulo para ser gestor com uma legislação tão implacável e injusta. A tropelia ainda precisa ser aprovada pelo Senado, que dificilmente encontrará razões para deter a marcha da tropa em direção aos campos do paraíso. Enquanto votam, cantam: passa boi...

      Por que não discutir em comissão? O relatório de Carlos Zarattini (PT), favorável às mudanças aprovadas, foi retirado da comissão especial e levado diretamente ao plenário. Por que não realizar audiências públicas? Por que não incrementar o debate? Por que não ouvir especialistas até cansar? Provar a intenção do mal exigirá instrumentos da psicologia e talvez da metafísica. A resposta padrão para cada cobrança será cândida: não foi por mal. A boiada fará coro: acontece. E assim se passarão os meses e os anos sem estouros nem condenações. Salvo se os senadores tiveram um surto de inaudita coragem. Conta-se que na Roma antiga senadores gostavam de surpreender a sociedade. Muitas vezes, para pior. Esse costume se perdeu nas brumas da história. Um argumento usado para sustentar a aprovação da aliviada geral fala em segurança jurídica. Quase sempre que essa expressão surge, a boiada comemora.

      Vida que segue. Muitos ficam pelo caminho. Neymar poderá um dia passar Pelé em gols pela Seleção. Arthur Lira deverá ficará livre de alguns incômodos para se dedicar com mais afinco e civismo ao bem do país. Há muito o que se comemorar. A boiada respeitosamente agradece.


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