Lembranças ardentes de águas frescas

Lembranças ardentes de águas frescas

publicidade

Era verão.

O sol torrava os campos tendo como fundo musical o canto das cigarras. Tudo queimava sem pressa. Pedras reluziam no meio do verde acendendo-se como se fossem moedas lambidas por relâmpagos. O gado babava nas taperas um cansaço de existir. Nada se mexia. Só eu, na ansiedade ardente dos meus 12 anos de idade, queria mover nosso mundo: jogar, correr, pular, andar a cavalo e nadar na lagoa.

– Sai do sol, guri.

Era a voz sábia da minha avó que se fazia ouvir como um lamento enquanto lavava os pratos numa bacia de alumínio com água tirada da talha de barro. Meu avô se deitava, sem camisa, à sombra do velho umbu frondoso, sobre o carnal fresquinho de um pelego vermelho. Nada lhe arrancava da doce pasmaceira. Só levantava na hora de tomar mate.

– Vai ter uma congestão, guri. Sai desse sol.

Minha avó temia, por nós, as cobras, os bois brabos, o sol do meio-dia, os cavalos ligeiros e seus coices vingativos, as funduras das sangas, as espinhas de peixe e as indigestões. Por tudo e por nada, ela soltava as suas imprecações e tentava nos salvar do solaço.

– Esse guri é o diabo aquato. Ou morre empachado ou de insolação.

Até quase cinco da tarde, tínhamos de ficar na sombra. Ajudávamos a descascar pêssegos para fazer passas, que secariam em cima de uma lata na cobertura de capim do galpão. O tempo não passava. Meu avô queria que lhe coçássemos as costas. À noite, dedilharia sem êxito um violão ou me levaria na garupa de um matungo para ouvirmos chorar um bandonion. Eu sonhava com as águas da lagoa. Por que os adultos não tinham a mesma pressa de brincar na água? Às vezes, repentinamente, o tempo fechava. Minha avó fazia cruzes de sal e de erva-mate. Cobria os espelhos com lençóis ou toalhas. Rezava.

– Que Santa Bárbara nos proteja – repetia.

O sol brilhava no arame das cercas, nas águas irisadas de um açude com a forma de um livro ou, na minha imaginação, de um pergaminho, visto na escola, com uma enorme letra capitular. Imagens pontilhadas se formavam na quentura da natureza sem que eu pudesse, ainda, associá-las a quadros de impressionistas. Nos finais de tarde, vencidos por nossa insistência, os adultos aceitavam nos levar até a lagoa. Ficavam de guarda, matando mutucas, enquanto nos divertíamos como num filme de Marcel Pagnol. Fecho os olhos sem querer: sinto cheiros, ouço risos, vejo cores, mergulho.

A voz da minha avó ressoa:

– Não vai pro fundo, guri.

Procurei a lagoa no Google Earth. Não achei. Tomei uma decisão. Preciso voltar lá para saber se, adulto, cabelo tordilho, conservo o mesmo gosto por aquelas águas lerdas que me refrescaram a infância. O sol escaldante de Porto Alegre acende moedas do meu passado: o umbu, os pêssegos, a lagoa. Enquanto não volto, me consolo com a herança deixada por meu avô: o gosto pela melancolia chorosa de um bandonion.

– Essa guri só pensa nessa lagoa – queixava-se minha avó.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895