Lembranças de Cannes

Lembranças de Cannes

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Eu já fiz muita coisa esquisita na vida.

Penso nisto enquanto leio notícias sobre o festival de cinema Cannes de 2014. Um filme de Jean-Luc Godard está chamando atenção. Quando eu tinha 27 anos, troquei um lugar na editoria de esportes, onde se viajava muito, por outro na editoria de variedades, conhecida, na época, de muito machismo e pouco refinamento, como editoria de frescuras. Eu tinha acabado de cobrir um jogo do Brasil pelas eliminatórias da Copa do Mundo, na Venezuela, e podia até sonhar, embora não fosse o preferido da cúpula, em cobrir o torneio. Nada disso me impediu de realizar meu sonho de ser repórter de cultura. Depois, resolvi morar na Europa. Consumei outro sonho: ser correspondente internacional de jornal.

Nessa época, minha obsessão eram os festivais de cinema – Berlim, Cannes e Veneza – e as feiras e salões de livros – Frankfurt e Paris. Fartei-me de cobrir esses eventos. Em determinado momento, feito um existencialista tardio, parei diante de uma janela, no Palácio dos Festivais, em Cannes, e tive uma estranha reflexão:

– Que estou fazendo aqui? O que quero para a minha vida?

Um dos meus primeiros textos sobre Cannes já indicava a minha perplexidade: “Palácio do Festival, agora com tapete vermelho antiderrapante, em traje domingueiro. Aos homens não cabe escolha: smoking. O presidente do júri, Clint Eastwood, apenas trocou o negro pelo creme. As mulheres podem delirar. Verdadeiro baile de debutantes, com mães e filhas empetecadas. Passa-se do belo ao brega luxuoso sem piscar. Limusines descarregaram tripulantes orgulhosos para a cerimônia de abertura, no teatro des Lumières, do 47° Festival de Cannes. A massa chegou cedo para mimar os ídolos: gritos, aplausos, perfumada histeria. Vestidos transparentes, calcinhas minúscula perdida entre nádegas generosas. Corpos esguios, entre as fãs, saídos da praia, com sal na pele, direto para a tietagem. Uma senhora de seus 50 anos, vestido sereia, 30 centímetros de boca, apertou tanto os velhos seios que eles saltaram para fora e ganharam mais movimento do que as pernas da vaidosa dama”. O tédio me doía.

O sociólogo falava mais alto do que o jornalista: “O fenômeno, dizem os especialistas, renova-se a cada ano. Cannes serve para ver e ser visto. Não faltaram, apesar dos 26 graus, os pesados casacos de pele. A presidente do júri, Catherine Deneuve, apresentou-se com um conjunto verde-limão horroroso. Conseguiu, ela, a esguia, tornar-se roliça. Juliette Binoche e Jeanne Moreau saíram-se bem melhor. A noite, depois do filme dos irmãos Coen, terminou em festa no Noga Hilton. Eastwood, Jeanne e Catherine passaram para acenar aos convivas. O forte da festa ficou para os boêmios”. Nada mais óbvio.

O meu olhar, porém, era deliciosamente entediado: “Ninguém brilhou mais na largada da maratona de Cannes do que Clint Eastwood. O velho caubói ganhou os corações europeus, sempre tão avessos aos homens do país do GATT e do imperialismo cinematográfico. Clint, diplomático, defendeu a necessidade de uma nova influência do cinema francês no mundo”. Ninguém mais fala do GATT. A nova influência do cinema francês é um homem da velha onda, o eterno Jean-Luc Godard.

 

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