Lembranças de um pomar da infância

Lembranças de um pomar da infância

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Um pomar

 

      O tempo era elástico como um bodoque feito da mais tenra borracha negra ou como o fole de uma sanfona chorando nas madrugadas de baile. Havia o tempo gelado à beira do fogo e o tempo das águas refrescantes com cheiro de terra. Havia o tempo de tomar mate à sombra vasta dos cinamomos ou dos umbus frondosos e o tempo sereno de olhar o horizonte em busca de sinais de chuva na Banda Oriental.

– Vem água. Se armando lá pros lado do Uruguai.

Havia o tempo de olhar as barras vermelhas do poente e o tempo de contemplar as barras alaranjadas do amanhecer. Havia o tempo de inspirar o cheiro de mato e o tempo de afagar as crinas dos cavalos sem pressa de montar. Havia o tempo de ouvir uma história com muitas reviravoltas e o tempo de silenciar longamente antes de dar uma resposta qualquer. Havia o tempo de sorver. Foi isso que se perdeu?

– Bueno, amigo, se bem me parece...

Foi isso que perdemos para a ansiedade? Havia o tempo das crianças voarem soltas como pandorgas coloridas, o tempo dos adultos refletirem ensimesmados com um pé descansando, mais elevado, numa cerca ou num toco, e o tempo dos velhos lembrarem com voz embargada.

– Foi, se a memória não me falha, por volta de trinta e poucos...

Havia o tempo das lições, o tempo das impressões, o tempo das longas esperas e até o tempo de acalmar o mundo com um ditado:

– Esse conhece o rengo sentado e até o cego dormindo.

– Ovelha não é pra mato!

Havia, sobretudo, na estação mais docemente luminosa, de uma luz especial, uma luz de vida e esperança, uma luz que pontilhava a natureza, o tempo de contemplar, cheirar e colher frutas no pomar.

– Cada pé mais carregadinho que o outro!

Havia a textura das frutas. A pele dos pêssegos era um veludo amarelado que cobria uma polpa doce e suave como um beijo ou o som de um regato correndo preguiçosamente. O sol lambia folhas, galhos e frutas. Havia essa palavra ainda desconhecida: caleidoscópio. Havia uma confusão de cores e de sumos. Sim, de sumos de pêssego e de ameixa escorrendo pela boca, inundando os lábios, chegando ao pescoço, banhando os dedos, incrivelmente lambuzando barrigas nuas.

– Deus, esses guris lambuzam até os joelhos pra comer um pesco!

Havia o pomar com a moldura de um quadro não pintado, uma obra-prima da natureza e dos homens, um titilar de pássaros de peitos coloridos, um leve farfalhar de folhas antes do toque de uma mão, uma velha mão generosa e enrugada, uma mão calejada de homem do campo, uma mão de mulher, de mãe, de irmã, de tia, de avó, uma mão travessa de criança agarrando um galho para subir e empanturrar-se de polpa.

– Desce daí, guri. Já chega.

Havia uma confusão de cores rebrilhando ao meio-dia, de fechar os olhos de tanto brilho, uma orgia de cheiros e uma alegria parada no ar. Havia, noutro momento, noutro lugar, o sumo das pitangas avermelhando tardes modorrentas. O pomar era um jardim secreto de cheiros e de seivas que se renovavam, sempre melhores, sempre mais vivos, sempre mais densos. Antes do tempo de partir para sempre.

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