Lendo mulheres na quarentena

Lendo mulheres na quarentena

Escritoras que revelam outros mundos

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      Não tenho tido muito apetite pelas querelas nacionais do momento. Ando um pouco enfarado. Tudo parece encenado. O perigo mora ao lado. Flertamos com o mal. Os tempos atuais me suscitam questões mais amplas, metafísicas, estruturais, científicas, filosóficas, culturais, esquisitas. Tenho pensado muito nas construções históricas, na produção dos imaginários, na fixação dos valores, nas narrativas que os homens inventam para justificar o pior, que insistem em defender como se fosse uma emanação espontânea da natureza. Nada é natural em vida social.

A política e arte têm sido dominadas pelos homens ao longo do tempo. É um poder que os donos não querem perder ainda que estejam na contramão da história. Em muitos lugares, a dominação masculina persiste em moldes milenares. Arte é, em grande parte, questão de ponto de vista. Depende de quem olha e de onde olha. O olhar feminino, por construção cultural histórica – uma gramática do olhar –, descortina aspectos ignorados ou desprezados por homens. Um filme extraordinário sobre a luta feminina para ter autonomia é “Adoráveis mulheres”, baseado no livro de Louisa May Alcott, dirigido por Greta Gerwig.

O talento não bastava. Uma mulher para viver bem precisava arranjar um marido rico ou herdar. Louisa May Alcott, filha do influente e original educador Amos Bronson Alcott, aprendeu sobre o valor da autonomia e da independência. Em “Mulherzinhas”, romance adaptado para o cinema como “Adoráveis mulheres”, ela retrata a busca de mulheres por espaço num mundo de homens dominadores mesmo quando cultos, polidos e agradáveis. Feminista, abolicionista, empregada doméstica, escritora, ativista, rebelde, Louisa incomodou muita gente. Hoje, o seu modo de pensar deveria ser senso comum. Ainda não é.

      Dois livros me impressionaram recentemente pelo talento das escritoras e pela diferença de olhar em relação a homens: “A amiga genial”, da italiana Elena Ferrante, e “Hibisco roxo”, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O século XXI será da diversidade ou não será. E será feminista. É todo um imaginário que se transforma a fórceps. O Rio Grande do Sul tem um bom exemplo de como o olhar feminino pode contar uma mesma história de outra forma. É o caso da “Casa das sete mulheres”, de Letícia Wierzchowski, sobre a Revolução Farroupilha.

      Fiquei pensando, nestes tempos de listas, nas cinco maiores escritoras brasileiras para mim. Lá vai: Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Cora Coralina, Cecília Meirelles e Conceição Evaristo. Poderia acrescentar muitos nomes: Carolina de Jesus, Lígia Fagundes Telles, Ana Cristina César, Ana Miranda. Há jovens escritoras de grande talento. O que elas contam? Muito sobre a violência masculina. Enormemente sobre violência física e simbólica. Até se poderia fazer uma fórmula: a história da humanidade tem sido a da violência e da dominação masculinas. É essa história que está em mutação. A literatura escrita por mulheres tem refletido essa metamorfose civilizacional. Louisa May Alcott botaria fogo no machismo que ainda tenta se perpetuar.

Manuela D'Avila me sugere ler a nigeriana Buchi Emecheta.

Farei isso.


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