Lições reais do pragmatismo

Lições reais do pragmatismo

Quando banqueiro quer golpe de Estado

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      Aprendo muito com as séries. Continuo vendo “The Crown”, história da rainha Elizabeth II e da sua agitada família de desocupados. Volta e meia um deles arranja um rolo por tédio ou falta do que fazer. É uma novela. Tem intrigas, inveja, brigas de família, traições, puxadas de tapete, cotoveladas, bebedeiras e bajulações. Um capítulo me pegou: o golpe. Acontece nos anos 1960. Governa um trabalhista que, segundo ele mesmo em confissão à rainha, nunca pegou no pesado, não gosta de cerveja, prefere conhaque, nem de cachimbo, adora charutos. A economia vai muito mal. A moeda foi desvalorizada. O cenário não pode ser mais pessimista, desolador e sem perspectivas.

      Um banqueiro tem uma ideia genial em nome do pragmatismo, da defesa da economia e do ataque ao mal representado pelo socialismo, que teria um plano secreto para dominar a nação e implantar o comunismo. A sua ideia, burilada com ajuda de uma equipe de experts, não pode ser mais simples e objetiva: derrubar o primeiro-ministro. Mas não com uma moção no parlamento. Com um velho golpe de Estado. Como o primeiro-ministro havia demitido um importante membro da família real, herói de guerra, do comando da Defesa, o plano do banqueiro ganhou um componente mais ousado: cooptar numa reunião-almoço (esse pessoal adora complô bem-servido) o lorde demitido para liderar a insurreição. O velho nobre, tio do marido da rainha, rejeita inicialmente a proposta. A vaidade e o despeito, porém, falam alto.

      Nada move tanto o mundo quanto o orgulho ferido. Salvo o interesse financeiro, vulgarmente chamado de ganância. Depois de uma vida de altas responsabilidades e poder, o nobre dispensado por excesso de gastos na Defesa não se sente preparado para a dolce vita da aposentadoria. Nasceu para dar ordens, comandar, ser bajulado. Não se vê como um plebeu condenado a cuidar da horta para se distrair. Um golpe capaz de torná-lo primeiro-ministro tem seu charme, ainda mais que, segundo o proponente, o país já viveria em regime de exceção.

Ele pede ao banqueiro tempo para pensar. Volta e discorre sobre golpes em países como o Gabão. Conclui que na Inglaterra, com tradição democrática, é mais complicado. Por fim, sustenta que só tem uma chance de funcionar: com o apoio da sua prima, a rainha. A monarca estava nos Estados Unidos tomando lições, em companhia de um velho amigo que por ela fora apaixonado, para tirar o atraso britânico na criação de cavalos de corrida. Recebe telefonemas. Precisava descer escada para ter acesso ao aparelho. A conquista do espaço fazia russos e americanos duelarem. As extensões, porém, ainda não estavam na ordem do dia. A rainha toma pé da situação. Volta correndo para sua casa.

      Manda chamar o velho almirante convertido ao golpismo na quarta idade. Ele tenta convencê-la com os argumentos pragmáticos do banqueiro. Elizabeth II passa-lhe uma carraspana. Finca pé num raciocínio de uma simplicidade antológica. Consultar os eleitores. São eles que renovam ou liquidam governos. Moral do capítulo: os pragmáticos nunca mudam. São democratas até precisarem de um golpe.


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