Liberdade, armas e drogas

Liberdade, armas e drogas

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      Jair Bolsonaro flexibilizou a posse de armas por decreto para as zonas mais violentas. Todas. Numa primeira leitura o cidadão vai poder se defender dos bandidos. Noutra interpretação, o Estado confessa sua impotência em dar proteção à população e arma todo mundo para que cada um tente se defender. Se puder. Especialistas garantem que é tiro no pé. Ou no coração. A bandidagem costuma tomar armas até da polícia. Vai se fartar tirando revólver de usuário incauto. Sem contar o que poderá acontecer em termos de violência doméstica ou de massacres à moda dos Estados Unidos.

O liberal inglês John Stuart Mill apostou no “princípio do dano” para tentar organizar restrições impostas aos indivíduos pela sociedade organizada sob a forma de Estado. O princípio da liberdade é fundamental. Pode sofrer restrições? Em caso afirmativo, quando? Para Mill, quando a liberdade de alguém pode causar dano a terceiros. Se dirijo alcoolizado, posso causar dano a terceiros. Se vendo drogas que fazem mal à saúde, posso causar dano a terceiros. Se fumo em ambiente fechado, causo dano ao fumante passivo. A teoria de Mill parece irrefutável. Mas ela não basta.

Se ando de carro sem usar cinto de segurança, posso causar dano a terceiros? Em princípio, não. Numa visão ampliada, sim. Um pai de família que morre por não ter usado o cinto causa dano aos seus filhos. Um liberal, que defende a posse, e até o porte de armas, em nome do princípio absoluto da liberdade individual, não poderia defender a proibição do consumo de drogas. Poderia, pelo princípio do dano, proibir o comércio. Neste caso, deveria também pedir a proibição do comércio de álcool e cigarro. Esse mesmo liberal poderá argumentar que há graus diferentes de danos, toleráveis e intoleráveis, suportáveis ou não, e, como no caso do cinto de segurança, que o pai que se droga produz dano aos seus filhos ou à sociedade, que terá talvez de tratá-lo em seus hospitais públicos.

E se o indivíduo possuir recursos e não tiver filhos? Não se engane o leitor: a questão não é proibir armas e liberar drogas ou liberar armas e proibir drogas, mas construir um princípio geral da restrição possível à liberdade individual. Outro princípio é o da funcionalidade ou da utilidade. Especialistas dizem que a repressão ao consumo de drogas não funciona. Produz violência, corrupção e gastos estratosféricos inúteis. Esbarra na lei da oferta e da procura. Se há procura, haverá oferta. Os armamentistas podem usar o mesmo argumento: a restrição à posse de armas só serve aos bandidos, que continuam abastecidos e atacam cidadãos desarmados. Se estiverem armados eles se defenderão melhor? Ou morrerão mais facilmente tentando se defender e aumentarão o arsenal dos bandidos?

Na questão das drogas entra inconfessadamente um aspecto moral. Na das armas, um elemento teórico: se o Estado não me defende, não tenho o direito de tentar me defender sozinho? E se for papel do Estado defender o cidadão da sua arriscada e fatal tentativa de se defender sozinho? Chegou a hora da prova das nove. É matar ou morrer.

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