Limites da interpretação

Limites da interpretação

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Eu fui às aulas de Jacques Derrida durante dois anos e meio na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Eu fiz o curso completo de Umberto no Colégio da França. Eu tenho convivido e aprendido com Edgar Morin desde 1992. Jacques Derrida e Umberto Eco foram dois dos maiores especialistas em interpretação de textos de que se tem notícia. Cada com um o seu estilo e o seu foco, foram craques da desconstrução, da hermenêutica e da semiologia. Edgar Morin, pensador da complexidade, ensina como desmontar racionalizações. Derrida era capaz de passar três horas mostrando como fazer a interpretação de um parágrafo. Eco escreveu um livro devastador: “Os limites da interpretação”. Muitas interpretações podem ser possíveis. Mas nem todas.

Chega uma hora em que a interpretação se esgota.

Um texto pode dizer muito, ainda mais se for torturado, mas não necessariamente tudo o que se quer ler ou ouvir. Há textos que não suportam divergência. É célebre a anedota sobre um suposto diálogo entre Derrida e o alemão Karl-Otto Apel. O francês ficou famoso por defender a polissemia interpretativa. Haveria sempre um desvio entre o emissor e o receptor. Aquilo que eu digo é lido de maneira diferente pelos diferentes leitores. Cada um usa a sua lente para interpretar.

Essa lógica levada ao extremo resultaria na impossibilidade do consenso, ou seja, de uma comunhão interpretativa, uma justaposição.

– A comunicação é impossível – teria dito Derrida.

– Concordo – teria respondido Apel.

Bela “boutade”. Baixando o nível, certos textos exibem-se, como diria o ministro Gilmar Mendes, com “clareza aritmética”. Como doutor em sociologia pela Sorbonne tenho compartilhado alguns pontos de vista com um grande jurista, que já deveria estar no STF, Lenio Streck, sobre legalidade e direito. Lenio resumiu: “Se o Direito é apenas uma teoria política de poder e é o que o Judiciário diz que é, sugiro pararmos e entregarmos as fichas, porque, neste caso, cada um tem a sua teoria. No fundo, estamos pagando caro pelo fato de termos dado pouca importância ao Direito, paradoxalmente sob o pálio de uma Constituição normativa como a nossa”. Direito é o que a lei diz que é.

Quando foi que tudo começou a mudar? Ao STF cabe aplicar a lei e a interpretá-la quando há dúvida. Ele é o guardião da Constituição, não o seu autor. Que espaço pode haver para a interpretação neste texto constitucional? “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O que é trânsito em julgado? Segundo, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, é a “expressão utilizada para indicar que não cabe mais recurso contra decisão judicial”. O ministro do STF Luís Roberto Barroso apresentou dados estatísticos para demonstrar que raramente decisões de segunda instância são alteradas. Disse também que a maioria do mundo “civilizado” institui o começo do cumprimento da pena depois da sentença de um colegiado. Eu sou a favor. Desde que isso não contrarie a “clareza aritmética” da Carta Magna de um país. Elementar.

A Constituição Federal Brasileira está errada quanto a isso? Provavelmente. Ela favorece a impunidade aos poderosos que se alimentam de recursos? Certamente. Só há duas coisas a fazer: 1) Mudar a Constituição, 2) tornar o judiciário mais ágil. Por que o STF deixou prescrever, depois de 14 anos, uma ação contra Romero Jucá? Resposta acachapante: porque quis. A questão maior não é mais exclusivamente jurídica, mas sociológica, hermenêutica e filosófica. Para que serve uma Constituição se ela pode ser descumprida por quem tem a função de aplicá-la? O STF está autorizado pela mesma Constituição a interpretá-la? Sim. Mas não a seu bel-prazer. A interpretação tem um limite.

Qual? A “clareza aritmética” do texto. O ministro Alexandre Moraes bolou uma interpretação ainda mais livre: o trânsito em julgado se daria depois de dois julgamentos. Lenio Streck tem mostrado o paradoxo pós-moderno da “juricidade” brasileira: legal ou jurídico é aquilo que o judiciário diz que é. Por quê? Porque sim. Porque ele se atribui o direito de fazê-lo ou, como diz a citação, de “errar por último”. O problema é que ele não pode “errar” contra a previsão constitucional explícita. Nenhuma teoria contemporânea sobre a independência dos poderes pode convincentemente fazer o judiciário legislar. Algumas pretendem isso. É abuso de interpretação.

O judiciário, por não ser eleito, tem um limite de representação.

Edgar Morin chama de racionalização o salto lógico que leva da racionalidade ao seu excesso doentio, vulgo sofisma ou trapaça argumentativa. A lei não prevê com “clareza aritmética” auxílio-moradia para todos os juízes. Estes, por considerarem seus proventos defasados, desviam a finalidade de uma rubrica para atualizar seus ganhos e justificam-se alegando que não é admissível tratar iguais como diferentes, ou seja, sem isonomia. Pura malandragem retórica. Ainda ouço Derrida sussurrando: “Façamos o texto falar”. E Umberto Eco gritando: “Se o texto diz não, pode ser não mesmo. Imaginar que por trás de um não sempre pode haver um sim pode ser perigoso e abusivo”. A isso se chama “juízo de conveniência”. Hoje, me serve. Amanhã, não.

 

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