Mate amargo, essência da gauchidade

Mate amargo, essência da gauchidade

Uma tradição que não hierarquiza

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      Nunca aprendi a tomar chimarrão, que em Palomas só chamávamos de mate amargo. Meu pai, com quem tropeei, levando gado por aquelas campanhas lindas e melancólicas de Santana do Livramento, ficava triste com essa minha incapacidade existencial. Eu queria gostar. Toda a minha vida tive esse desejo de ver a cuia passando de mão em mão, inclusive pela minha. O mate era sagrado nas casas dos meus pais, dos meus tios e dos meus avós. Tomava-se de manhã, antes do café, de meio-dia, antes do almoço, e ao final da tarde até quase o cair da noite. Como todos faziam naquela fronteira com o Uruguai embebida de rituais.

      Eu queria fazer parte da roda, refletir antes de encostar os lábios na bomba, acompanhar as conversas como parte da “tribo”, passar por longos silêncios acariciando a cuia. Por alguma razão certamente orgânica nunca pude suportar o gosto da erva na água. Creio que isso afetou a minha biografia, se posso dizer que tenho uma. Se tomasse chimarrão talvez eu fosse outra pessoa, menos tenso, mais feliz. Penso, às vezes, que não tomar mate me tornou mais solitário, desgarrado, inapto para a fruição dos melhores momentos coletivos de cada dia. Havia tanta sabedoria prática no que diziam aqueles homens e mulheres tomando mate e conversando como se o tempo estivesse parado.

      Sempre vi na cerimônia do chimarrão componentes que admiro: respeito, reciprocidade, laço social. Sei que as hierarquias não desaparecem nesses momentos. Por alguns instantes elas se atenuam. O carnaval, como o estudou o antropólogo Roberto DaMatta, era um ritual de inversão. O plebeu virava nobre. Aos poucos também isso se apagou. O barão de ontem é a celebridade de hoje no camarote VIP. Nada pode eliminar o que a realidade deforma e consagra. Mesmo o mate solitário de algum gaúcho me vem à memória como um quadro de solidão povoada.

      Se eu pudesse, aprenderia a tomar chimarrão mesmo tardiamente para me tornar um sexagenário enraizado na cultura do compartilhamento mais intenso que já conheci. Anoitecer no pago sentindo o calor do mate nas mãos seria um conforto para quem se comove com o crepúsculo. Defendo que o cronista precisa muitas vezes ser “inútil”: falar de sentimentos, de sensações, do que lhe atravessa o coração. Se conseguir emocionar ou distrair terá ganhado o seu dia. Pode haver algo mais difícil do que arrancar alguém da sua indiferença? Fazer sorrir? Fazer sentir saudades? Fazer chorar? Não estou dizendo que tenho esse poder maravilhoso. Quem sou eu para realizar essa magia!

      Tenho comigo que o gaúcho solitário tomando o seu mate amargo ao nascer do sol ou ao cair da tarde é o grande cronista do silêncio. Tudo lhe passa pela mente, tudo o comove sem que faça alarde, tudo renasce no brilho fugidio dos seus olhos. O que seria do Rio Grande do Sul sem o mate? Que paradoxo: gosto de carne assada, mas poderia viver sem. Não gosto de chimarrão. Entendo, porém, que, mesmo sem tomar, não posso viver sem. Sorvo o mate nas imagens que não se apagam. Para mim, o mate amargo é mais forte traço da identidade gaúcha. A sua essência.


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