Matrizes do racismo brasileiro

Matrizes do racismo brasileiro

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Um dos textos mais cruéis, perversos e chocantes que já li na vida foi publicado no jornal “A Província do Espírito Santo” em 11 de setembro de 1887. Um ato terrorista em defesa da escravidão. Esse texto, “A lenda da criação do preto”, é analisado num dos capítulos do meu livro “Raízes do conservadorismo brasileira: a abolição na imprensa e no imaginário social” (à venda em promoção no Correio do Povo). Essa paródia mostra como o racismo foi uma construção consciente, articulada, hedionda e disseminada pela “mídia” da época para tentar naturalizar a mais infame das instituições: a escravidão.

Eis o texto odioso: “No tempo da criação do mundo, Satanás vendo o Padre Eterno criar Adão, de um pedaço de barro, quis também fazer o mesmo. Pegou num pedaço de argila, deu-lhe as mesmas voltas que vira dar-lhe Deus, e depois insuflou-lhe a vida num sopro. Mas com grande espanto e com grande raiva sua, esse bocado de barro, como tudo o mais que ele tocava, ficou negro: – o seu homem era um homem preto. Ali ao pé corria límpido e transparente o branco rio Jordão. Satanás teve uma ideia, lavar o seu homem para lhe tirar a negrura. E pegou nele pela cintura como se pega num cachorro e mergulhou-o no rio. Mas as águas do Jordão afastaram-se imediatamente, enojadas com aquela negrura, e o homem de Satã, o primeiro negro, apenas mergulhou os pés e as mãos no lodo. E por isso só as palmas das mãos e dos pés ficaram brancos”.

O fecho é atroz: “Furioso com o seu desastre, Satanás perdeu a cabeça, e pespegou um famoso murro na cara do seu negro que lhe achatou o nariz e lhe fez inchar os lábios. O desgraçado preto pediu misericórdia, e Satanás, passado o primeiro momento de fúria, compreendendo que no fim de contas o negro não tinha nenhuma culpa de ser assim, teve dó dele, arrependeu-se de repente do seu gênio e acariciou, passando-lhe a mão pela cabeça. Mas a mão do diabo queima tudo em que toca: crestou o cabelo do negro como se os seus dedos fossem ferro de frisar. E foi daí que o preto ficou com carapinha”.

A última frase é uma visão de mundo: “Si non é vero...” Textos como esse eram aprendidos nos jornais e espalhados em versões orais adaptadas, ampliadas, sempre mais racistas e cheias de detalhes. O jornal “O Estado de São Paulo”, que surgiu em 1875 como “A Província de São Paulo, sustentou-se durante seus primeiros dez anos publicando editais de leilão de escravos. A luta pela abolição avançava nas ruas, em pequenos jornais engajados, em teatros ocupados por ativistas, mas uma parte da imprensa se mantinha fiel ao horror em nome da propriedade privada, da ordem, das leis e da “boa-fé” dos escravistas.

Passei cinco anos pesquisando para escrever este livro sobre a abolição por acreditar que é preciso mostrar aos jovens de hoje que os imaginários não surgem por acaso. Eles são o produto de construções históricas apoiadas em tecnologias de difusão. O racismo teve na imprensa brasileira seus intelectuais orgânicos dispostos a usar todos os recursos imagináveis para espalhar a falsidade ideológica como pseudociência ou como obra superior. Eu me emociono ao falar disso.

 

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