Meio milhão de mortos

Meio milhão de mortos

A dimensão da tragédia brasileira

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      Em abril de 2020, hospitalizado com Covid-19, eu torcia para que o número de mortos não chegasse a três mil. Hoje, já ultrapassamos meio milhão de vidas perdidas. Será que os fazedores de previsões otimistas ainda se consideram corretos em seus delírios negacionistas? Mais de 500 mil mortes rondam as nossas autoridades. Poderia ter sido diferente? Muito cedo, escrevi aqui que o governo apostava na imunidade de rebanho. Levar a população a se contaminar para naturalmente deixar o vírus sem hospedeiro. Essa perspectiva poderia resultar em milhões de mortos. O Supremo Tribunal Federal fechou a porta a esse disparte ao dar autonomia a prefeitos e governadores para endurecer medidas contra o coronavírus devastador.

      Meio milhão de mortos, de pais, mães, filhos, parentes, amigos, amores, jovens e velhos ceifados por um inimigo invisível, mas não indetectável. Por que outros países têm menos mortos do que o Brasil? O que eles fizeram? Basicamente três coisas: isolamento social mais rigoroso, uso mais severo de máscaras e rapidez na vacinação. Há lugares que vacinaram bem, mas não respeitaram suficientemente o isolamento. A vacina sozinha, ainda mais quando limitada à primeira dose, não impede de infectar-se nem de infectar. Diminui chances de gravidade, internação e morte. Ainda não entendi a rejeição às máscaras. Tampouco as contestações às vacinas. Só duas hipóteses me ocorrem: ignorância e ideologização.

      A hipótese da ignorância, como falta de informação, atenua a responsabilidade dos envolvidos, embora seja imperdoável a partir de certo nível de formação, pois informação é que não falta em tempos de internet. A hipótese da ideologização agrava qualquer postura relativa a um tema em que a vida das pessoas é afetada. Como é possível ser contra vacinas com todo o histórico de benefícios prestados pela ciência nesse universo? Quando eu rezava para que o número de mortos estancasse de um minuto para outros, vendo os dados desfilarem na tela pequena da televisão do quarto de hospital, eu me apegava a uma espécie de metafísica da vontade. Queria o impossível por amor à humanidade. Achava que todos se uniriam contra o perigo e que todas as medidas duras seriam tomadas de modo uniforme.

      Passada a ilusão, feita de ingenuidade e esperança, que é a composição natural do improvável, sobreveio um estranho pendor para cálculos absurdos: quantas lágrimas para meio milhão de mortos? Quanto cinismo para a ausência de um lamento oficial? Sou daqueles que consideram missão primeira do líder consolar seus liderados. Não resolve? Gera um sentimento de solidez moral. A realidade se alimenta do simbólico e de frutas. O lado prático costuma ser garantido pelos cientistas. E assim passamos de 500 mil de mortos numa tragédia sem fim. Há quem sustente que o melhor é ignorar esse fato acachapante e comemorar os milhões de curados. Diante de uma nuvem de gafanhotos prestes a devorar uma lavoura, aconselhava-se a pensar em tudo que fora colhido na safra anterior.

Não para. A luz no fim do túnel é a vacina.

Enquanto não se chega do outro é preciso se proteger.

Ficaria mais fácil se o exemplo viesse de cima.

 


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