Melhor dos mundos

Melhor dos mundos

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Acordo cada vez mais incrédulo diante das misérias do mundo. Sofro com a inclemência da história. Mas que importa o sofrimento de quem não conta, não decide, não representa nem a si próprio, não faz ou nada pode fazer? Eu vi a pobreza em Moçambique e só pude fotografá-la como um falso ar blasé. Eu vi a pobreza no Marrocos e não consigo esquecê-la. Eu vejo a miséria no Rio de Janeiro e me escondo atrás do medo que sinto. É tão estranho sentir medo dos que padecem com a pobreza e não dos que a provocam pois eles usam terno e gravata e preferem os crimes de colarinho branco? Eu vejo a pobreza em Porto Alegre e pego outro caminho. Eu sei das execuções, até de deficientes mentais, e preciso seguir em frente. O filósofo Leibniz, protegido de aristocratas, disse que vivemos no melhor dos mundos possíveis.

Todos os outros, sem livre-arbítrio, seriam piores.

Mas o que escolhemos de fato? Quem pode escolher? Uns podem escolher entre i-phone e smartphone. E os demais? Eu li uma reportagem do “New York Times” sobre as imensas favelas da Mongólia. Homens diplomados que catam lixo em Ulan Bator. O mesmo acontece em São Paulo. A história da humanidade é a história das misérias do mundo. Em que tempo realmente a maioria viveu bem? Em qual sistema econômico todos os seres humanos tiveram bem-estar e liberdade? Acordo, sento na cama e conto os anos com um frio na barriga. Quando foi que me tornei anacrônico? Quando foi que perdi a fé na utopia? Quando me deixei impregnar por esta tristeza diante dos fatos? Sim, é de fatos que se trata. Quando foi que comecei a rir dos propagandistas da ideologia tecnicista, esses que nos prometem o paraíso futuro graças às máquinas na sociedade do pós-trabalho?

Quando foi que me tornei piegas, encastelado, ruminando problemas, devastado por calafrios sentimentais inesperados e assustadores? Quando foi que voltei a ler Zola e Aloísio de Azevedo? Quando foi que passei a dormir mal sem razão aparente e a me preocupar com o destino dos outros? Quando foi que comecei a fazer perguntas bizarras? Assim: como posso acreditar num ex-banqueiro que propõe medidas de austeridade para quem vive com salário mínimo? Como posso levar a sério um tecnocrata que recebe R$ 76 mil por mês e defende o fim dos “privilégios” de quem ganha até R$ 5 mil? Não sei quando tudo começou. Sei que passei por essa transição. Hoje, arrasto meus pés, carrego meus fardos, desprezo a literatura de autoajuda que fala da felicidade para quem puder comprá-la no cartão de crédito.

Gabriela Mistral resumiu o estado de exaustão que pode nos assolar depois de uma vida de apostas e de derrotas: “Este longo cansaço se fará maior um dia,/e a alma dirá ao corpo que não quer seguir”. Eu penso nesses homens de Ulan Bator, esses seres que nunca encontrarei, habitantes de montanhas de lixo, esses pobres mongóis, que são também os miseráveis de São Paulo e de Porto Alegre, eu penso nesse nome exótico para nós, Ulan Bator, e sinto minha alma se cansar. A primeira resistência que precisamos praticar é justamente a da alma. É ela que nos mantém a postos, a bordo, em eterno combate.

Olho nosso passado como quem revive a viagem de uma andorinha. Não tenho categorias de pensamento mais sofisticadas. Penso com minhas penas. Escrevo com minhas asas. Uso as metáforas que apanho de graça nas conversas que tenho no ônibus a cada manhã. Um cobrador rigoroso me disse: “Dê sempre o troco exato”. Uma senhora gentil me aconselhou: “Nunca passe do ponto”. Um fiscal cansado me definiu coletivo: “Sempre cabe mais um”. Um motorista me tranquilizou: “Nunca erramos o destino”. Adotei isso como filosofia. Acompanho desde o ninho as nossas migrações. Seguimos nossos instintos e as estações. Olho o nosso futuro como quem espera na fila: o tempo não passa.

Sei que somos passageiros. Mas temos direitos. Se não mais de cidadãos, ao menos de consumidores. Ou deveríamos ter. O consumidor é a nova majestade do universo. Embarcamos em trens e descemos de aviões. Sozinhos, sabemos que não fazemos verões. Em bando, sonhamos com a fuga. Andamos por terras estranhas. Navegamos em nossas entranhas, louvamos nossas façanhas, praticamos nossas transgressões. Rimamos em prosa. Dormimos com parceiros suaves, doces, agridoces, amargos. Por vezes acertamos as traves de campos estendidos nos céus onde somos réus por pecados sem originalidade. Choramos quando nos sentimos de volta em nossas casas. No percurso, quase perdemos asas, utopias, casas. Em certos portos, paramos apenas para fumar.

Em outros portos, deixamos um filho, uma esperança, um futuro, um trilho, uma inscrição. Sinuosos feitos fantasmas caminhando sobre uma lâmina pálida, curvados como a chama numa navalha, inscrevemos nossos nomes em relevos e entalhes. Ainda buscamos nossos destinos. Seguimos o voo dos estorninhos por opção. Só não conseguimos – eu não consigo – apagar essa inquietude que se alastra com as misérias do mundo. Será para sempre assim? Colonizaremos o espaço, venceremos a morte, mas não descobriremos a fórmula do bem-estar universal?

 

     

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