Memória no esquecimento

Memória no esquecimento

História de um homem sendo tragado pelo Alzheimer.

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O que é mais doloroso: não conseguir esquecer ou não conseguir lembrar? Não sei. Eles não sabem, mas eu sei que ele se lembra de uma parte considerável, uma parte enorme, quero dizer, do que viveu quando criança. Na verdade, não consegue se esquecer dessa memória absoluta na falta quase total de lembranças. Quase tudo lhe escapa. Algo lhe sobra. Sabe, às vezes, que está sozinho nesta clínica, que chamam de casa de repouso e até mesmo de Jardim da Melhoridade, e que daqui não vai sair. Só no caixão. Um caixão pelo qual anseia, quando se lembra quem é, embora não tenha um só conhecido para segurar as suas alças. Ouço conversas sobre o seu estado de saúde. Em seguida, tudo se apaga e tudo se ilumina num tempo inesquecível. O tempo dele.
Sim, eles sabem que ele se lembra obsessivamente do seu passado, faz parte, por assim dizer, dessa doença nojenta, numa das suas etapas, acho que são três, pelo que li, mas não se interessam por suas lembranças, essas memórias que ele vomita até se estafar e morrer. O sono para ele é como uma morte bem-vinda que custa a acontecer. A sua vida agora se resume a vegetar no excesso de uma lembrança, que lhe vem como uma golfada de vômito, e no esquecimento. Aos poucos, vai perdendo as palavras. Quando chegou aqui, havia uma beleza triste, quase trabalhada, na história que repetia sem parar. Era um velho estranho que falava como um livro e revirava os olhos.
– Se me faço entender – repetia.
– Por favor, acalme-se – diziam-lhe os atendentes.
A calma era um quadro estranho para ele. Uma vez, uma única vez, falou disso: “Penso na calma como numa camada de vidro sobre o pasto, uma película de geada sobre a grama numa manhã de julho. A calma era um estado de existência, o nosso, na placidez do nada. Naquele tempo, eu me surpreendia comigo mesmo, com meu rosto, minhas mãos, meu nariz, minha face no espelho da água gelada do regato”.
Que tempo foi esse? Ele não se lembrava.
– Um tempo congelado na eternidade, se me faço entender.
[...]
Tenho visto a evolução da sua doença como quem acompanha o desenvolvimento de um bicho ou de uma planta. Um bicho ora manso, ora terrível com seu hálito de fera agonizante. Nas primeiras vezes que eu o vi, ele ainda tinha viço e certa clareza nas ideias. Era um homem frágil, certo, que se enrolava nas suas hesitações como se fizesse delas um cobertor ou uma rede de proteção. Já dava para perceber que ele esconde algo, uma coisa que o pressiona cada vez mais a falar. Sofre de uma estranha doença que parece obrigá-lo a querer confessar o que deve, por toda força, omitir ou trancafiar. Ouvi o psicólogo falar em culpabilização típica dos transtornos de ansiedade. Confesso que não considero essa hipótese aceitável. Não, ao menos, no caso dele. Não encaixa em tudo o que deixa sair feito pus da sua carcaça. Carrega um segredo que precisa revelar antes de morrer ou de perder de vez a memória, que sente escapar como a vida.
Ontem, quando toquei nele, estava quente. Ardia de febre. Apertei a campainha. A enfermeira veio contrariada. Acho que interrompi alguma atividade dela no celular. Os jovens andam assim. Nunca largam o telefone, que funciona como um computador. Já me mostraram como se usa. Não me interessei. Passei. A enfermeira chegou pisando firme. É uma mulher forte, loura, alta, germânica.
Tem olhos de um azul metálico, que me fulminaram. Apontei para ele. Fiquei observando os procedimentos. A mulher sacou um termômetro e começou a cumprir a sua obrigação. Mexia num vegetal de longas folhas murchas. Custei para encontrar alguma luz nos olhos dele, tão opacos e vazios.
Esse olhar, porém, como já disse, ainda se acende algumas vezes, embora cada vez menos, quando uma tecla qualquer sensível no seu cérebro embotado parece acionar um mecanismo de lembranças tão vertiginoso quanto bloqueado por falta, como falam os especialistas, esses que vejo todo dia e quase não me notam, se entendo bem o que dizem, o que não é certo, de sinapses. O coitado é como um velho rio de águas tristemente marrons interceptadas por todo tipo de sujeira, de tocos, de lixo, um sofá aqui, um cavalo morto ali, um carro que saiu da avenida e tombou no lodo de madrugada, um vestido azul, toda sorte de lembranças acavaladas e uma vontade ferrada de jogar para fora do leito aquilo que ameaça afogá-lo sem nunca transbordar.
{...]
Espero o dia em que ele me revelará o seu terrível segredo, aceitando-se que de fato tem um. Temo que ele mesmo já o desconheça. Terá esquecido em algum desvão? Será que se reserva para o último instante, preservando uma espécie de patrimônio afetivo ou de cidadela sagrada do que viveu? É pouco provável. Tudo é improvável na sua existência até que ele se põe a falar e incrivelmente se torna verossímil no meio de uma massa de dados confusos. Percebo que a escuridão da perda da memória avança sobre ele como um exército de aranhas negras com suas patas aveludadas e implacáveis. Foi ele quem falou de algo assim quando ainda pedia para colocar os pés numa bacia com água quente e ficava algum tempo apertando a boca, espremendo os olhos e falando de coisas esquisitas. O médico de plantão ria dessa sua estranha mania. Nada no organismo dele exigia um escalda-pés.
– Meu avô gostava disso, com arnica – ele explicava.
Foi numa dessas que falou das aranhas. Num país distante, disse, um homem foi atacado, na cama, por um exército de aranhas negras. No começo, eram duas, em seguida, num segundo, já eram dez, 27, 49, centenas, talvez, depois, milhares. Quanto mais elas se multiplicavam, mais o homem desaparecia encoberto por essa mortalha viva. Elas ganhavam território em marcha forçada, a passo de ganso.
Ao falar em “passo de ganso” – lembro como se fosse agora, como se fosse o seu grande segredo enfim revelado, como se visse eu mesmo as aranhas que ele descrevia –, os seus olhos opacos se iluminaram por um instante com uma fagulha incendiária de alegria e um sorriso travesso recortou os seus lábios secos e cada vez mais estreitos.
– Um cachorro a cavalo, aranhas a passo de ganso... – murmurou.
Fiquei esperando a continuação do relato, que só veio uma semana depois sem qualquer aviso. As retomadas das suas histórias não acontecem como capítulos de uma novela. Nem mesmo como uma novela da qual a pessoa perdeu alguns capítulos. É preciso organizar os cacos e reconstruir as sequências a partir de uma palavra, de uma imagem, de um indício qualquer. Nem tudo se encaixa.

 


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