Memórias de Paris

Memórias de Paris

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 Tenho escrito sobre quase tudo que vi, vivi e pesquiso. Mas nunca quis escrever um livro sobre os anos que morei em Paris. Farei isso quando tiver 80 anos. Se eu chegar lá. Na primeira vez, morei quatro anos em Paris. Na segunda, três meses. Na terceira, mais três meses. Na quarta, um ano. Faz 27 anos que vou todo ano a Paris. Não é uma obsessão, mas trabalho. Quando cheguei lá, na primeira abordagem apenas para passear, antes da mudança para a longa permanência, fiquei deslumbrado com aquilo que mais pode faltar na cidade-luz: a luminosidade natural. Era março. Um dia ensolarado. Tudo brilhava. Uma doce ilusão. O sol se foi. O cinza (“la grisaille”, o termo pode ser usado também para uma técnica pintura monocromática) impôs-se. Como bem dizem os franceses, “en avril ne te découvre pas d’un fil”.

Abril pode realmente ser cinza, frio e enganador. Melhor não se destapar tão cedo. Tão mais próximo da primavera e tão longe dos belos dias de verão, quando a “canícula” pode ser mortal. Nos meus quatro primeiros meses de Paris (de setembro a dezembro) eu só pensava numa coisa: voltar o mais rapidamente possível para o Brasil. Odiei tudo nesses primeiros tempos: o cinza, a chuva miúda, o frio, o fechamento das pessoas, a tristeza dos metrôs, o falar baixo nos restaurantes, o aquecimento excessivo dos ambientes, o vento gelado nas ruas, os galhos torcidos e sem folhas das árvores melancólicas, os cocôs de cachorro por toda parte, o cheiro forte de suor nos lugares fechados, os cumprimentos obrigatórios de pessoas que não sorriam, a escuridão dos túneis de metrôs. Era nosso costume dizer: “Vamos emburacar”.

Eu andava pelas ruas como um zumbi torturado pelas minhas lembranças precoces e pela minha falta de paciência para me adaptar a um estilo de vida bastante diferente do nosso. Íamos ao Louvre e ao Museu de d’Orsay uma vez por mês para fugir da realidade. Eu sonhava com o nosso sol, com a nossa chuva generosa, com os nossos gritos, com os nossos restaurantes, onde sempre havia mais barulho do que numa manifestação política numa praça de Paris, com a nossa esculhambação cotidiana. Sim, eu sentia saudades da nossa desordem. Aprendi a fazer os “cem passos”. Quando se ia a casa de alguém e se chegava alguns minutos antes da hora prevista era preciso dar umas voltas no quarteirão para esgotar o tempo e bater na porta na hora exata.

Teve um dia em que comecei a pesquisar preços de passagens – a internet ainda era apenas um boato – convencido de que não ficaria mais uma semana num lugar tão inóspito e asfixiante. Eu ouvia Caetano e cantava: “Eu quero é dar o fora”. Não suportava aqueles prédios todos iguais, sem cor, com o mesmo número de andares, padronizados. Eu queria abrir a janela e tomar um bafo quente na cara. Andar pela cidade e ver prédios de todos os tamanhos, formatos e cores. Se encontrasse uma bandeira brasileira acho que me enrolava nela e começava a chorar. Sonhava com guaraná, bombom sonho de valsa, gol do Internacional, costela assada, flauta de gremista, ônibus cheio, pelada no final de semana, novela das oito, grito de gol espichado até o narrador não aguentar mais, horas intermináveis conversando com caras tomando cerveja aguada em bares onde se mudava o mundo a cada três horas, com interrupções na revolução a cada hora para fazer xixi.

Um dia, porém, começou o milagre. Eu via um colega de aula na Sorbonne entrar pela porta da frente, subir as escadas do auditório e sair pela porta de trás. A aula era de análise fatorial. Depois de muitas aulas assim, saí para conferir. Fiz meu primeiro amigo francês. Vieram as festas em apartamentos estudantis de 30 metros quadrados, os jogos de futebol no Bois de Vincennes, com temperaturas abaixo de zero, onde ganhei o apelido de “renard des surfaces”, a raposa da área, as conversas telefônicas intermináveis sobre literatura, filosofia e viagens e os papos sobre futebol. No PSG, brilhavam Raí, Valdo e Ricardo. O inimigo era o Olympique, de Marselha. Virei torcedor do Paris Saint-Germain. Um novo mundo se abria. Aprendemos que quando um francês se torna amigo é quase certamente para sempre.

O dinheiro era curto. Descobrimos, ao lado da Aliança Francesa, onde estudávamos a partir das sete e meia da manhã, noite fechada, a “Alliance Voyages”, e como meu futuro amigo Michel Houellebecq, cruzamos a Europa de ônibus já ignorando os odores fortes em veículos lacrados. Depois, em tempos melhores, faríamos tantas vezes tudo de novo, de trem, de carro, de navio onde era possível, e de avião. As primeiras vezes parecem as melhores. Como esquecer os amigos feitos e nunca mais encontrados, o primeiro gole de vodca, mesmo para um abstêmio, em Moscou, o primeiro caviar – para degustação, em águas finlandesas, os primeiros raios de sol na Península Ibérica. Por outro lado, claro, formou-se uma comunidade de brasileiros. Se fiquei, tenho de agradecer a quem atrasou o pagamento. Se tivesse dinheiro, teria voltado. Cometeria o maior erro da minha vida. Aí o pessoal me pergunta: “Não tens vontade de morar para sempre na França?” Não. Tenho vontade de voltar para Palomas.

Talvez isso ainda aconteça.

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