Meu último drible

Meu último drible

Polanski foi detido ao sair do avião no sábado passado, em Zurique

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Dei um drible seco no Jackson, que é jovem e ótimo jogador de futebol de salão. Um drible num espaço mínimo. Ele quase aplaudiu. Acelerei para chutar em gol. Senti algo me bater na panturrilha esquerda. Jackson teria me acertado sem querer com a ponta do pé? Não. Alguém teria jogado uma bolinha na minha perna? Não. Estaria eu com uma moeda no bolso do calção? Não. Nem bolso havia. Sofri uma distensão muscular. É a minha enésima lesão. Já quebrei mão e ombro. Já tive problema em joelho e estiramento em posterior de coxa. Nunca desisti.

Agora, não sei. Senti a minha hora chegar. Estou desolado.

Jogamos há 21 anos juntos na Luís de Camões. Primeiro na Santo Antônio. Depois no Geraldo Santana. Uma turma maravilhosa. Vi gente envelhecer e cara ficar adulto. O Cristiano agora é pai. Quando começou conosco tinha uns 12 anos de idade. O Rodrigo virou capitão da Brigada Militar. Mas ainda é chamado de Tenente. O Marcelo passou de publicitário a sociólogo. O Já Morreu está no DM há três meses. Cipriano vem de Viamão sem falta. Tiago tem faltado por causa do Inter, que nos aprontou essa de jogar sábado. Jorge, meu irmão, que mora em São Leopoldo, e Celso, que casou e virou produtor musical da Glau Barros e boêmio, estão flertando com a aposentadoria precoce. O primeiro tem apenas 50 anos. O outro nem chegou aos 60. Tem 58 ou 59.

Morreu um time inteiro: Ricardo, Paulinho, Alexandre, Dulu e Moleza. E um reserva, o Soneca, que chutava com o pé de apoio. Alguns sumiram no mundo. Nunca paramos de renovar o grupo. Outro dia jogou por alguns minutos um guri bom de bola de dez anos. O Adão, que não foi mais, está pelos 65 dando show. O Tononi, alegretense sexagenário, quando aparece mostra a elegância clássica do Ademir da Guia. Nos últimos tempos, começamos a jogar com a turma da quadra ao lado, liderado pelo “Veio”, que joga muito bem, faz belos gols e está sempre pronto a não deixar a bolar parar ou não rolar. Fiz mais de mil gols, mas uns duzentos a menos que o Doutor Nilson May, da Unimed, contra quem, apesar dos desafios, nunca jogamos por falta de espaço na agenda.

O calendário do futebol brasileiro é sempre uma esculhambação.

Acho que foi meu último drible. Um drible de placa para baixar o pano e sair de cena. Sentirei falta da gurizada, do Charlys com sua inclinação de quase 90 graus antes do chute, do Miguel com sua batida potente, do Brigadiano, que nem brigadiano é, do Juliano indolente e bom de drible, do Mimi, sólido como um armário antigo e sempre querendo dar caneta, do Bráulio, do Tom com sua indefectível camiseta tricolor, da galera toda. Velhas tardes de sábado, tantas alegrias. Sinto que muita coisa vai ficando para trás. Que vou fazer das minhas tardes de sábado? A preparação para o jogo era uma felicidade sem tamanho. Os comentários pós-jogo eram um capítulo fantástico. Adeus.

Que vou fazer deste meu velho corpo já meio cansado e que encontrava no futebol a sua superação e o reencontro com a infância? A temporada 2017 está acabada. Dificilmente haverá outra. Preciso aprender a brincar de outra coisa. Salvo se não me curar desse vício.

Só três coisas podem evitar minha aposentadoria: o clamar das massas, a falta de bom senso e a pressão da Cláudia, que fica me dizendo para não para de jogar. Ela teme que eu caia em depressão profunda.

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