Meus conflitos e minhas ilusões

Meus conflitos e minhas ilusões

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Acho profunda demais esta reflexão poética de Ferreira Gullar: “Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira”. Tão profunda quanto a ideia de Pascal, sempre citada por Edgar Morin, de que a parte está no todo, que está na parte. Holograma. Uma parte de mim anda em conflito com tantas outras. Uma parte me incita, me excita, me provoca, outra parte me critica, puxa a orelha e condena. Uma parte manda eu me expor sempre mais, outra parte diz para eu me recolher, me retirar, me poupar, me preservar, me proteger enquanto é tempo. Uma parte me faz escutar Casa no Campo e sonhar com carneiros e cabras pastando no meu quintal. Outra parte me faz ouvir Milton Nascimento e aceitar que todo artista tem de ir aonde o povo está.

Uma parte me conclama a ser mais duro, vertical, implacável, provocativo e cortante. Outra parte me convida a ser mais relativista, tolerante, cauteloso e receptivo. Uma parte me cobra escuta, outra parte me exija fala. Uma parte me chama de conivente com as misérias do mundo, outra parte me chama de comunista tardio. Uma parte se assusta com as pressões, outra parte se mobiliza para ir à luta. Uma parte se enfurece quando se sente desrespeitada, outra parte ri de si mesma e me sugere levar tudo com humor e jogo de cintura. Uma parte de mim é sensível, chorosa e melancólica, outra parte é fria, racional e guerreira. Uma parte quer paz. Outra parte quer guerra. Uma parte vive na infância.

Outra parte aqui e agora.

Uma parte me censura por ceder diante de todos os pontos de vista, sempre procurando razões nas razões de cada um, outra parte me ataca por ter certezas demais. Uma parte me chama de ingênuo, outra parte me rotula de perverso e de ignorante. Uma parte vibra com minha empatia em relação aos vulneráveis, outra parte me chama de indiferente. Uma parte de mim fica fula quanto eu perco a calma, outra parte se irrita com minha mania de autocontrole. Uma parte se encanta com minha capacidade de conviver bem com diferenças, outra parte me chicoteia por ser pouco seletivo. Uma parte quer romper com tudo, outra parte não quer romper com coisa alguma. Vivem brigando.

Uma parte de mim quer viajar, outra parte não suporta mais classe econômica de avião lotado. Uma parte de mim quer jogar futebol, outra parte avisa que já passou de hora de parar. Uma parte sonha em trabalhar até o último dia da vida, esperando que seja longa, outra parte calcula a aposentadoria. Uma parte aceita todos os convites, outra parte avisa que vai ficar em casa ouvindo música.

Cada parte de mim segue o seu rumo carregando suas penas, ilusões e obsessões.

Uma parte chama a outra de neoliberal, sendo acusada de esquerdismo infantil. Uma parte gosta de Beethoven. Outra parte ouve José Mendes. Uma parte adora Michel Houellebecq. Outra parte vê novela de televisão. Uma parte torce para o Internacional, outra parte não torce para clube algum. Só não encontrei parte alguma em mim até agora que defenda o governo de Michel Temer, a reforma da Previdência e o desmantelamento da legislação trabalhista. É tudo.

*

Os pássaros

Quem não se emociona com os pássaros

Que partem para o outro lado do mundo?

Será que eles sabem mesmo aonde vão

Ou, como os homens, voam para o fundo,

 

Fundo imenso do tudo, do nada, da imensidão?

 

Há em cada pássaro uma solidão desplumada,

Como se cada ave solene se despisse no ar,

Mantendo na revoada a vida por um penar.

 

Canto e esperança sobre a água salgada.

 

Será que os pássaros sentem saudades do sol?

Levarão os pássaros na bagagem uma lembrança?

Memória das pedras, dos ninhos, de um arrebol?

 

Existem pássaros que voam em esquadrão,

Podem ser vistos zumbindo no azulão,

Quem são eles, esses estorninhos?

Por que não escolhem outros caminhos?

 

Há todo tipo de viajante e de viagem.

Para onde vai agora esse albatroz?

Por que seu voo parece assim atroz?

Por que seu olhar parece assim feroz?

 

Acumulam esses pássaros milhagem?

Ou lhes basta um saco de aniagem,

Um aceno, um piar e uma paisagem

Desde que sigam sempre a avançar?

 

A andorinha sozinha não faz verão,

Talvez por isso viaje em excursão.

Será que nas alturas os pássaros rezam

E pedem ao seu Deus por tempo bom?

 

Como esses pássaros lembram homens, viajantes,

Como lembram esses grupos de retirantes,

De trabalhadores, de ansiosos emigrantes

Buscando aconchego nas asas uns dos outros.

 

Por vezes, na aspereza do céu, em alarido

Parecem querer cobrir o silêncio ferido

Pela tristeza incontida da retirada.

 

Que mágoas e inquietações levarão os pássaros?

Terão a certeza de encontrar casa e comida?

Terão deixado sem despedida algum amor de estação?

 

O que separa os pássaros dos homens?

Será mesmo o que se chama de instinto?

Conhecerão os homens a alma do absinto?

 

Ou, feito os pássaros, seguem em repontes,

Taciturnos ou ruidosos, bebendo um tinto,

Viajando para esses velhos novos horizontes

Como quem tenta decifrar a natureza do mar?

 

     

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