Minha mãe, nossa mãe

Minha mãe, nossa mãe

Homenagem a uma mulher extraordinária

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Tem certos dias em que penso na minha mãe e não me contenho: que mulher extraordinária. Criou sete filhos (teve oito, um morreu cedo) com o salário de meu pai, simples cabo da Brigada Militar. Penso na minha mãe e vejo nela todas as mães do mundo. Abnegada, lutadora, corajosa, decidida. Como foi possível que nada faltasse a todos nós com tão pouco? Que capacidade de dividir entre todos o necessário! Fomos à escola, estudamos, estamos na luta. Minha mãe tinha um credo, uma convicção: só o estudo abre caminho. Obrigou meu pai, que amava a campanha, a pedir transferência para a cidade quando chegou a hora de fazer a filharada avançar nos estudos.

      Por muito tempo eu não me dei conta da matemática que minha mãe executava para vestir todos os filhos, alimentar, comprar material escolar, dar lazer. Eu não tinha a menor ideia de quanto ganhava um cabo da BM. Quando soube disso, fiquei perplexo. Era quase mágica. Como se diz, nunca passamos necessidade. Tivemos infância e adolescência dignas. Meu pai, disso eu também não me dava conta, era genial. Ele se virava. Conseguia que conhecidos lhe emprestassem chácaras em Palomas para onde nos levava nas férias ou nos finais de semana. Plantava, colhia e nos oferecia um paraíso natural sem ter dinheiro. Éramos felizes e sabíamos.

      Começamos a trabalhar cedo. Pelos doze anos, eu já era “mandalete” no armazém do Seu Ibarra, de calça curta e revólver de brinquedo na cintura. Aos 14, era dono de banca de revista. Mas minha mãe, sempre ela, operou para que eu não me desviasse do principal: estudar. Pena que não guardei provas daqueles anos de trabalho infantil para contabilizar o tempo na minha aposentadoria e escapar da navalha do banqueiro Paulo Guedes. Às vezes, eu penso na minha mãe e me pergunto com sinceridade: como ela sabia que era tão importante estudar? Ela que, casada aos 15 anos de idade, não pode ir longe nos estudos. Eu penso na minha mãe, ao cair de certas tardes, e louvo essas mulheres, todas essas mães do universo, que carregam o futuro do mundo primeiro no ventre e depois nos ombros.

Padecer no paraíso – Durante muito, na casa da minha mãe, havia um pequeno quadro na parede com um texto emoldurado. Um clássico texto que dizia: “Ser mãe é padecer no paraíso”. Eu achava o texto piegas. Tem certos dias, porém, que eu penso na minha mãe e naquelas frases. Possivelmente minha mãe se reconhecia naquelas imagens sobre uma mistura de felicidade e de sofrimento em ser mãe. Ela sempre me parecia feliz. Jamais mostrava abatimento. Devia sofrer, sem que percebêssemos, na hora de fazer as contas. Lembro-me de ir com minha mãe nas Casas Salim comprar roupas para a família toda. Minha mãe passava horas escolhendo incansavelmente. Eu me impacientava. Por que não pegava logo o que queria? Era precisa enquadrar tantas necessidades, tantas idades, quatro gurias, três guris, no orçamento. Uma dúzia de prestações que não podiam ser muito altas.

      Quando eu penso em minha mãe, me comovo. Penso nos seus silêncios, nos seus sonhos, na sua persistência, na sopa das noites, que, ela devia saber, não era o nosso prato preferido, mas era preciso garantir “substância” e um naco de carne para nove bocas. Nas chácaras emprestadas, meu pai plantava de tudo: abóbora, milho, batata doce e batata inglesa, melancia, mandioca, melão. Verduras, muito pouco, que gaúcho não era de comer salada. A mesa ficava farta. Tinha mogango com leite, arroz com pêssego, miúdos de boi no café da manhã, café engrossado com farinha, pão caseiro. De vez em quando, em troca de um serviço, um fazendeiro dava uma ovelha – um capão – para o meu pai. Era dia de festa. Assim também quando se matava porco. Eram momentos em que via minha mãe atarefada e feliz.

Certos dias, quando a chuva cai de mansinho ou o vento sopra com a suavidade das brisas perfumadas, eu penso em minha mãe na varanda de uma das chácaras emprestadas ao meu pai, olhando a paisagem, e sorrio como se o tempo não tivesse passado. Ela disciplinou as contas da casa, manteve os filhos na linha – ninguém fuma e ninguém bebe – e sempre se esmerou para andar bem arrumada e arrumar a casa. Até hoje, planeja e executa reformas. Tem sempre uma melhoria em mente. Com o passar dos anos, a casa passou por uma metamorfose. Meu pai morreu. Minha mãe é a matriarca que nos une.

Assim, quando a noite cai, eu penso em minha mãe e em todas as outras mães que sonham e lutam, que sofrem e não desistem, que fazem contas e pagam prestações, que sorriem mesmo quando estão tristes e que, contra os ventos e as limitações orçamentárias, carregando expectativas excessivas, seguem em frente consertando casas e semeando esperanças. Quando minha mãe me diz ao telefone que foi visitar o túmulo do marido, eu penso: que grande amor. E assim vamos vivendo de coragem e afetos.

Minha mãe, dona Eneida, fará 80 anos em julho.

Escrevi "minha mãe" por ser o autor da crônica.

Mas em cada palavra ressoa um coletivo: nossa mãe. Eu e meus seis irmãos.

Feliz dia das mães a todas essas mulheres iluminadas.

Que o machismo seja ceifado do mundo.


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