Minha Manaus imaginária

Minha Manaus imaginária

Visão pessoal de uma cidade única

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 Na semana passada, pela quarta vez, estive em Manaus. Na primeira, tomei banho numa cachoeira em Presidente Figueiredo. Na segunda, vi o encontro das águas dos rios Negro e Solimões. Na terceira, visitei uma aldeia indígena a umas duas horas da cidade. Desta vez, pediram-se para falar de Manaus. Eu? Confirmaram. Optei em falar da Manaus imaginária que sempre existe na minha alma e tem a fluência das suas águas. Uma Manaus que se confunde com a Amazônia e ressoa em fragmentos de livros de Márcio de Souza, Milton Hatoum e de poemas de Thiago de Mello. Mas também do poeta paraense, meu colega de doutorado em Paris, João Jesus Paes Loureiro.

      Certa vez, numa viagem de avião, sobrevoando a Amazônia, li um poema de Loureiro e nele vi Belém e Manaus fluindo ao mesmo tempo:

 

Quem comanda o rio?

O mito?

A lei?

A lenda?

Onde perdeu-se o mapa,

o portulano?

Em que meridiano, norte ou sul,

ou em que polo?

Amazônia

Amazônia

Quem te ama?

Quantas vezes, no tempo, o rio encheu-se,

e, quantas outras, vazou?

O rio não tem consciência

de si mesmo,

no ermo de existir

que é ser corrente.

      Eu não sabia o que era portulano. Nada conhecia de cartas náuticas e desconhecia Ângelo Dulcert Portolano, que, em 1300, deu nome ao que leva o seu nome ao aperfeiçoar as linhas loxodrômicas, que eu conhecia menos ainda e hoje sei, por olhar, sempre que esqueço, na Wikipédia, que loxodromia é a “linha que, à superfície da Terra, faz um ângulo constante com todos os meridianos”. O que isso tem a ver com Manaus? Tudo. No meu imaginário. Manaus é rio, mapa, corrente, água, boto, vitória-régia, igarapé, carta náutica, mito, lei, porto, lenda, meridiano, rio que se enche, floresta, cascata, multidão, ermo, calor, borracha, zona franca, índios, surpresas, uma foto que conservo brincando numa aldeia.

      Então eu disse àquele que suponho fosse o cacique:

– Dá para vir passar uns dias aqui na aldeia?

­– Claro. Pode dormir no mato. Pega meu celular.

      E da aldeia se via a enormidade do rio. Ouvia-se o canto de pássaros, que não falavam a língua dos pássaros do sul. Manaus é Amazônia. A Amazônia vibra no mais famoso poema de Thiago de Mello:

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

      A esperança é cobra grande, Boiuna, dando à luz barcos, vegetação, novos homens, igarapés, tudo o que lenda diz e também o que ela não diz, tudo que se pode acrescentar ao que fica sugerido, ao que fica digerido, ao sonhado. Vejo o poeta paraense João Jesus Paes Loureiro no papel do soldado de Cametá (Pará) vindo libertar Honorato da sua forma inumana derramando-lhe leite na boca (sem qualquer conotação pornográfica).

      Na minha Manaus imaginária, dançam no palco da Ópera de Manaus, na revolução de 1930, misturando épocas e histórias, seringueiros, Fitzcarraldo, Herzog, Sarah Bernhardt, o governador Eduardo Ribeiro, Caruso, botos, tucunarés, tambaquis, escritores, poetas, antropólogos, ínidos, todos aqueles que pisaram e nunca pisaram no Teatro Amazonas.

Relembro o meu conceito de imaginário. Um aluno me perguntou: “Professor, o que é mesmo o imaginário?” Não hesitei: “A floresta encantada”. Danielzinho, filho da minha sobrinha Cibele, neto da minha irmã mais velha, a Iara, nasceu em Rondonópolis. Quando ele ia passear em Santana do Livramento, cidade da avó, no Rio Grande do Sul, ficava fascinado com um terreno vazio cheio de árvores, mato e taquareiras.

- É a floresta encantada – exclamava.

      Manaus é a floresta encantada, o cruzamento líquido de mitos, lendas, ciência, razão, natureza e cultura. Cidade-imaginário.

*

No foto, no Mercado Público de Manaus, Antonio Hohlfeldt, Márcio Souza e eu.

 

 

 

 

 


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