Modernidade, privilégios e poesia

Modernidade, privilégios e poesia

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Passei o ano de 2016 pensando sobre política, privilégios e poesia.

Aqui vão meus três últimos textos sobre esses assuntos.

 

Novos modernos


 

     Desconfio da modernidade. Tenho medo dos seus arroubos e das suas crenças futuristas. A modernidade nunca tem dúvidas. Todo moderno é dogmático. Eis uma afirmação moderna e dogmática. Não ter convicções é um problema. Ter demais é ainda mais problemático. A modernidade já nasceu anacrônica.

Vive sempre fora do seu tempo. O moderno é anti-humanista por natureza.

O homem é antigo demais e subjetivo em excesso para ser suportado.

O prefeito eleito de Curitiba, Rafael Greca, apresenta-se como moderno. Já confessou sentir nojo de pobre. Promete fazer uma lava-jato física na capital paranaense para limpá-la do “cocô” que, segundo ele, emporcalha as suas ruas. Quer ser um prefeito eficiente e não se importa em ser considerado antipático.

Velho de guerra da política como ela sempre foi e continua a ser, assume a prefeitura de Curitiba num tempo em que a moda é apresentar-se como gestor, empresário e antipolítico.

Nunca pensei em gastar três linhas com Rafael Greca. Ainda mais num final de ano. É como desperdiçar um generoso espaço para falar de Eunício Oliveira, atual citado da Lava Jato e futuro presidente do Senado pelo PMDB com apoio, ao que consta, do PT, que teria trocado suas votos pela manutenção dos direitos políticos da presidente Dilma Rousseff. Essa é hipótese é improvável. Duvido que petistas tenham se preocupado em salvar o futuro política da agora ex-presidente da República.

O assunto é Greca. A sua modernidade é tanta que sucumbi. À Folha de S. Paulo ele fez uma declaração que me desestabilizou: “Metrô é pra toupeira. Só tatu e toupeira é que morrem cavoucando. Não vou fazer. Não é próprio do nosso tempo. Por que vou gastar R$ 20 bilhões se posso gastar R$ 2 bilhões?” Sou fã de metrô. Tenho alma de toupeira e de tatu. Mais de toupeira. Não gosto de cavoucar. Mas não tenho problema de entrar em buraco se for para andar mais rápido e barato. Os europeus e os norte-americanos têm mania de metrô. Greca não os critica.

Garante que isso era muito moderno há 150 anos.

Curitiba é uma cidade moderna. Já teve o melhor sistema de transporte urbano do país. Atualmente é citada por empresários como exemplo de lugar com ônibus sem ar-condicionado. Já foi a cidade de Jaime Lerner. Hoje, é a sede da Lava Jato e a hospedaria dos convidados de Sérgio Moro para uma temporada de reclusão por conta dos seus feitos passados. Nada contra. Greca é que me faz pensar: por que metrô era bom e útil para Londres quando sua população era diminuta e não é para Curitiba numa época de congestionamentos e de alta densidade populacional?

Como sou toupeira, custo a compreender o pensamento dos modernos visionários. Estava em casa fazendo a lista dos personagens do ano. Greca atropelou e conquistou um lugar de destaque no meu top-10. Vai disputar com Michel Temer as primeiras posições. Uma vez, em Paris, encontrei o escritor Umberto, que morreu em 2016, no metrô. Ele desceu na estação Odéon. Eu o encarei. Agora é que decifro o que vi naquele momento: Eco era uma toupeira.

*

Nossos defeitos


 

     Tenho muitos defeitos. É sabido. Por mim e pelos que me conhecem, que não são muitos. Uma das minhas poucas qualidades é a vontade de sempre entender o que se passa e de não me isolar no ressentimento. Ou seria isso um defeito? Critiquei muito o prefeito José Fortunati ao longo do seu mandato. Ele chegou a se aborrecer comigo. É humano. Mas superou as críticas e continuamos mantendo um belo relacionamento profissional, com simpatia e afeto. Tenho criticado o governador José Ivo Sartori. Será que ele vai me marcar na paleta? Pode ser. É humano. Não?

Não entendi, por exemplo, a estratégia do governo em relação aos duodécimos dos poderes na votação do pacote Sartori. Acertadamente o governo queria que a parte do dinheiro público do legislativo, do judiciário, do Ministério Público e demais fosse definida com base na receita corrente líquida e não a partir do orçamento aprovado ao final do ano, que é uma peça de ficção. O judiciário chiou. Poucos se falou que os deputados, aprovando o projeto, cortariam na própria carne. A oposição ofereceu uma boa saída: um período de transição no qual os poderes receberiam uma porcentagem acima da receita efetiva, mas abaixo da previsão orçamentária.

O governo recusou. Por que mesmo? Continuo sem compreender. Foi para tudo ou nada. Mostrou-se intransigente. Ficou com o nada. Fez isso para jogar no colo da oposição o resultado, impondo-lhe uma vitória desabonadora? Derrotado, o governo fala em recorrer ao STF e cita o caso vitorioso do Rio de Janeiro nesse sentido. Acontece que no Rio quem recorreu ao STF foi o Tribunal de Justiça por causa dos atrasos do repasse do seu quinhão pelo executivo. Um ministro do STF, por liminar, decidiu, contrariando o interesse do TJ-RJ, que o governo carioca poderia fazer o repasse com base no arrecadado. Depois, já houve acordo entre as partes.

Qual o interesse em recusar uma solução negociada bastante razoável, em se tratando de algo para ser permanente, para tentar desconstituir uma decisão parlamentar soberana por intervenção judicial? O STF só poderá intervir se houve inconstitucionalidade. Fora disso, praticará uma interferência indevida no poder legislativo. Um dos meus defeitos é preferir o legislativo aos demais poderes. O seu poder emana diretamente do povo e ele faz as leis. Nada mais completo. Se for para o STF invalidar o que os parlamentares votam dentro da legalidade e da legitimidade, melhor fazer como disse o quase sempre estapafúrdio ministro Gilmar Mendes: entregar a chave.

Fecha o parlamento e deixa o STF legislar. O governo errou na estratégia. Só pode. A oposição ficou com a conta. Órgãos do executivo foram dizimados. Os demais poderes escaparam ilesos. Confesso que continuo sem entender essa jogada. Chego a pensar, por gostar de teorias conspiratórias, é outro dos meus defeitos, que foi jogada ensaiada. Melhor, jogo de cena. Não parece fazer muito sentido. Como nem tudo faz sentido no mundo e na minha cabeça, mais um defeito, mantenho a hipótese. E a pergunta: saberá Sartori conviver com críticas duras?

*

Neruda, Eliot, Vinícius e Natal


 

     Chego, às vezes, a ficar chocado com meu conservadorismo estético. Ele não é permanente. Mas, quando se apresenta, pode ser avassalador. Depois de ver Neruda, filme do chileno Pablo Larraín, tive um surto de quadradismo sem precedentes. Achei livre demais, excessivamente fantasioso, insuportável, puro entretenimento. Fui ao cinema, como um senhor de classe média, disposto a me distrair e a mergulhar na vida de um poeta que admiro muito. Queria até parodiá-lo escrevendo “Vinte canções desesperadas e um poema de amor”. Só.

Numa entrevista, o cineasta explicou-se longamente: “Neruda é conhecido, mas apenas como um ativista, político e escritor. Nós não conhecemos sua vida privada, não sabemos o que acontecia em sua casa, não conhecemos sua esposa ou seus amigos. Não sabemos exatamente que tipo de coisas ele costumava dizer ou imaginar em relação às pessoas mais próximas. Então, nós tentamos criar uma atmosfera, algo que, para mim, é uma espécie de ilusão. Acho que é a melhor forma de definir isso. E o filme é sobre isso: explorar Pablo Neruda. Então, nós tivemos que colocar palavras em sua boca e isso foi um grande desafio porque ele é um grande personagem. C\omo fazer um personagem desse tamanho falar, como descobrir o que ele vai dizer? Este filme é uma imaginação de como ele teria vivido esses momentos de sua vida”. Não me convenceu.

O tema do filme é a perseguição ao comunista Neruda no Chile do final dos anos 1940. Li e reli várias vezes Confesso que vivi, “quase” autobiografia de Pablo Neruda. Será que ele é tão desconhecido, tão misterioso assim? O poeta sabia das traições da memória: Estas memórias ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória, porque a vida é precisamente assim. É a intermitência do sono que nos permite aguentar os dias de trabalho. Muitas das minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las, ficaram em pó como um vidro irremediavelmente ferido”. Eu queria esse Pablo Neruda.

     Não sou contra o procedimento de ocupação da mente de personagens históricos. Fiz isso com Getúlio, Jango e Brizola. Só não achei convincente. O inspetor de polícia que persegue Neruda ocupa no filme um espaço que me pareceu incomensurável. Não consegui estabelecer qualquer empatia com ele. Eu queria Neruda. Tinha de suportar o insípido inspetor Peluchonneau. Sou um chato. O filme não é ruim. Não conseguiu, contudo, me pegar pela mão.

Eu deveria ter ficado em casa lendo poemas que me chapam.

“Para que me escutes

Minhas palavras

adelgaçam-se às vezes

como as pegadas de gaivotas nas praias

colar, cascavel ébrio

para tuas mãos suaves como as uvas.”

Durante muitos anos, quando poemas em papel ainda eram um luxo, considerei Vinte poemas de amor e uma canção desesperada o presente de Natal perfeito. Hoje, todos esses poemas estão disponíveis na internet. O engraçado é que os demais livros de Neruda não me fascinam. Defendo a tese de que cada grande poeta tem no máximo uma dezena de grandes poemas. O restante não tem a mesma qualidade. Neruda tem 21. A poesia para mim deve ser de descobrimento, “desencobrimento”, desocultando alguma coisa que a gente não vê. Nesse sentido, o jogo de imagens, mais importante do que rima ou métrica, precisa fazer algum sentido, trazendo algo à tona, desvelando.

Todos os dias eu me pergunto sinceramente: por que a poesia perdeu espaço? Quem é o grande poeta vivo admirado pelas pessoas? A poesia virou arte do passado, mesmo recente? Quem é o Drummond atual? Quem é o Manuel Bandeira? Quem é o João Cabral? O último grande era Ferreira Gullar, que escrevia artigos medíocres na Folha de S. Paulo. Por que não aproveitava o seu espaço com poesia? Não há lugar para poesia num mundo prosaico?

     Quando penso nas vaidades humanas, releio outro grande poeta, Eliot. Natal é tempo de humildade e de ternura. Tempo de saber que somos limitados e abençoados.

“Nós somos os homens ocos

Os homens empalhados

Uns nos outros amparados

O elmo cheio de nada. Ai de nós!

Nossas vozes dessecadas,

Quando juntos sussurramos,

São quietas e inexpressas

Como o vento na relva seca

Ou pés de ratos sobre cacos

Em nossa adega evaporada.”

     Vinicius de Moraes, nosso poetinha pop e boêmio, compositor e cantor, diplomata nas horas vagas, compôs um lindo e melancólico “Poema de Natal” nos anos 1940.

“Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados

Para chorar e fazer chorar

Para enterrar os nossos mortos —

Por isso temos braços longos para os adeuses

Mãos para colher o que foi dado

Dedos para cavar a terra.”

Feliz 2017 a todos! O melhor presente é a poesia.

 

 

 

 

 

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