Morrer todos os dias

Morrer todos os dias

Crônica de uma morte repetida ao longo da vida

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      Não posso negar os fatos nem as formas narrativas. Quem conta um conto, repete uma fórmula. Era uma vez um homem que morria todos os dias. Fez isso durante 100 anos. Morreu do primeiro ao último dia. Podia morrer de felicidade ou de tédio. Mas morria. Em geral, morria de raiva: da negligência, da corrupção, da incompetência, da maldade. Muitas vezes, morreu de amor. Depois, passou a morrer de angústia. Se não morreu de fome, morreu de ver a fome de muitos sem nada poder fazer. Morria de morte natural e de morte matada, até de bala perdida. Por fim, morreu de negacionismo, de fake news e de falta de UTI.

      Morria vendo políticos mentirem. Neste caso, chegava a morrer várias vezes por dia. Morria a cada telejornal. Morria de tanto perguntar: pode ser cidadão, na era da democracia virtual, quem não pilota um computador, quem não tem plano de saúde, quem não tem amigos importantes, quem não é amigo do rei? Pode haver cidadania quando o real se dissolve numa geleia de ódio? Pode existir cidadão quando o homem passa de pessoa a consumidor e de indivíduo a figura virtual? A anormalidade altera a natureza da cidadania ou apenas a desenvolve? 

      Pode haver sonho quando a utopia se torna imutável, perde o caráter transformador e converte-se num ideal de vida reacionário e apático? No caso deste ano pandêmico, aposta-se numa fuga para a frente. Tudo se resolverá. Basta deixar a natureza seguir o seu rumo. No caso dos que ainda creem em civilização empreende-se uma retirada estratégica, um recuo para o imemorial tempo da liberdade crítica; época mítica em que a crítica não se fazia necessária. Nas duas situações, o mito — motivações afetivas que racionalizam elementos derivados da racionalidade — ergue castelos e derruba argumentos.

      Não amaríamos Rimbaud se o eu não fosse um outro. Imaginário e perdição formam um todo, sem legitimação definitiva possível. A tecnologia não passa de um produto derivado e auxiliar. Conforme a ironia do incompreendido, a morte do real pelo virtual seria enfim o crime perfeito. Houve outro: a teoria crítica matou o autor; o leitor não ficou sabendo. A crítica ideológica, obcecada pela certeza não demonstrada, nunca leva em consideração a escrita, o ato de escrever, a força poética, irônica, alusiva, da linguagem, do jogo com o sentido e da dúvida. Não vê que a resolução do sentido está ali, na própria forma, na materialidade formal da expressão, na pergunta que não cala. O conteúdo só existe nas entrelinhas, jamais na superfície ou na sua pretensa prova. O homem caminha em círculos certo de avançar. Sobre os cemitérios teóricos, passeavam o homem e o rato silvestre. Pode-se viver quando se morre todo dia no texto e na realidade da indiferença?

O homem que morria todos os dias vivia nos seus escritos passados. Em cada um deles, encontrava os seus rastros. Tinha vivido. Até que chegaram as fake news. Então ele passou a morrer em cada verdade negada, omitida, suprimida. Chegou a se cansar de morrer. Ao menos, pensava, era como todo mundo. A diferença era a sua consciência.


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