Na contramão do destino ainda é o destino?

Na contramão do destino ainda é o destino?

Conto: um homem em movimento

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      Então eu comecei a andar na direção errada. O sol caía sem que ninguém se importasse. Havia mais gente interessada numa execução. Meus passos me levavam para uma nova realidade, um cenário que se descortinaria como um mundo que aparece numa dobra da esquina. Por muito tempo, antes da grande virada, eu me via dobrando as esquinas. Foi mais tarde que as esquinas me dobraram e vi que eram feitas de muitas pregas. Cada passo me levava ao destino. Eu sentia isso como quem espera o resultado de um exame que já não poderá negar a violência dos sintomas. Nem sequer a imprecisão da palavra destino me desviava do caminho. A cidade era um ronco entrecortado por buzinas, sirenes, gritos de ambulantes, insultos e um zumbido indecifrável. Eu me vestia como sempre: calça vermelha, camisa branca, sapatos marrons.

      Tudo que eu mais queria era deixar para trás esse passado que se imiscuía no meu futuro como um presente indesejado. Sentia as minhas mãos úmidas da velha e sempre incômoda ansiedade, essa companheira de tantas jornadas e poucos progressos. Espiei pelos vãos das silhuetas esquálidas dos edifícios e vi uma nesga do rio onde flutuava um pesado navio. Me vieram à mente, como um barco que encalha cansado de viagens e de elefantes, palavras esquisitas: azinhavre, ferrugem, estanho, megálito, estipêndio, viração. Havia um canteiro de flores no balcão de uma janela. Vi uma rosa como quem contempla a chegada de um trem: impressões, sol distante, a vida por uma moeda, cara ou coroa?

      Então eu apressei o passo, senti o vento áspero, lambi o sal nos lábios, que estavam secos como a borda de um vulcão, senti o coração palpitar feito um sino na solidão de uma capela rural, pesei a espessura do ar, tão denso que se poderia cortar com um estilete, levantei as mangas, que estavam no mais alto possível, enveredei como se na cidade existissem veredas, não apenas perigos, e vi o monstro, com seu milhão de vidas, me engolfar sem um gemido, menos ainda uma saudação. Antes de dobrar, te avisei que a cidade era um rio, um filete de água jorrando até se converter numa inundação. Quem já não viu o horizonte pegar fogo, o céu tingir-se de vermelho, o sangue fluir como uma lava, o olhar se perder em busca das velhas chamas?

      Chamas não há mais? Sim, havia chamas e algo me chamava entre grito, sussurro e uma estridência de viaturas policiais. O morto já não chamava a atenção, um negro coberto por um saco branco, na calçada deixada para trás enquanto as pessoas se dispersavam rumo aos bares e, quem sabe, aos lares. Eu caminhava rio adentro sem molhar os pés, longe o suficiente da lâmina da água para ver a coloração das últimas nuvens, cabeça então erguida, farejando ar, recortando as experiências na memória, o pesado volume no bolso direito, a vida espraiando-se por entre as frestas da noite com uma luz alaranjada difratando-se. Foi talvez nesse momento que me veio a pergunta cristalina e crua:

– Por quê?

      Passou o home tirando o casaco, as axilas com duas enormes marcas de suor, passou a mulher retocando o batom, lábios refeitos por cinzel, passou o policial de óculos escuros e medalhão no peito, carreira no meio fio, passou o jornalista que eu conhecia dos tempos do Pedra Vermelha, passou o fumante com o cigarro apagado, passou um resto de luz anunciando o negrume da segunda-feira. Tudo passava, ainda passa. Eu era passado. Uma névoa de lembrança. O carro vermelho bateu no branco. Trancou a esquina. Já não se via o rio. O canto inclinado do céu não sangrava mais. A noite estava a postos. O tom desse anoitecer lembrar vagamente aquele de uma terça-feira saindo de Atenas, coisa que não vale à pena lembrar, muito menos contar, mesmo se a poluição da polis ainda me invade os pulmões de escravo.

      Os gregos tinham uma palavra da qual me falou um velho português em Atenas: moira. Foi num táxi coletivo. O carro era amarelo; a tarde, cinza; o velho, muito branco. Moira é o destino. Andando na direção errada, com a noite me acariciando com suas patinhas de aranha, eu marchava para o meu destino. As luzes dos letreiros coloriam de produtos o universo da mercadoria. Eu sabia, por ter lido, que o “espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. Tudo tinha e tem o seu valor. Qual era o meu? Dobrei a esquina e recebi no rosto a vastidão do centro, essa margem, essa artéria no coração da ausência. Dali, sozinho na multidão, eu vi a rua se espichar como um rio teimoso por quadras e quadras, até secar.

      Então eu me decidi a atravessar o mar morto. Avancei. Nada mais tinha a perder. A última inocência da idade adulta se fora com o sol. A cada crepúsculo eu me lembraria de tudo. Forcei a passagem como quem não pode perder o derradeiro vagão. Afastei um homem, que rosnou, uma mulher, que me fuzilou com olhos tristes, esbarrei em ti, que ainda não eras tu, não tinha para mim um nome, uma biografia, um passado. Os dez anos que passaríamos juntos precisavam ser escritos no destino.


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