Natureza humana

Natureza humana

Por que somos seres estranhos?

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      Discutia-se a natureza humana. Uma corrente sustentava que o homem era em tudo natural. Outra, que a natureza era sempre uma construção humana. Para uns não havia distinção entre natureza e cultura. Para outros, toda cultura seria um artifício antinatural. Disso decorreriam os diferentes sistemas de classificação, inclusive os citados por Michel Foucault, Borges e os chineses. Há quem defina o homem como o único animal racional. E quem o veja como um animal que, mesmo adulto, precisa brincar para não adoecer. Dá para classificar os humanos em duas categorias: os que morrem longe de casa sem se importar e os que voltam, se puderem, às origens para completar o ciclo. Leva-se às últimas consequências a teoria das quatro fases da vida de uma pessoa. Na primeira, vive-se com a família; na segunda, com os amigos; na terceira, com os colegas; na quarta, com a família.

      Isso foi antes das clínicas geriátricas. Semelhante esquema pode ser aplicado ao local de existência. Na primeira etapa, vive-se em casa; na segunda, em escolas e universidades; na terceira, em empresas; na quarta, novamente em casa. Outro cenário: na primeira fase, vive-se no pátio de casa; na segunda, no ambiente escolar; na terceira, em empresas, aviões e cidades estranhas; na quarta, no bairro onde se mora. Jovem, vivi a noite do Bom Fim. Quase velho, vivo o seu dia. Durante muitos anos, vi o plano aberto. Hoje, conheço cada rua, cada prédio, cada fachada, cada recanto. Por décadas, vi a Redenção como um pano de fundo. Agora, estou dentro do cenário. Caminhar no parque, seguindo o mesmo percurso, é uma bênção. Os homens dividem-se entre os que precisam de novidades e os que são felizes na rotina. A indústria do turismo valoriza a viagem. Os seres humanos, porém, dividem-se entre os que adoram viajar e os que gostam de casa.

      Os viajantes, quando não podem ir longe, contentam-se em ir de casa para a praia ou de casa para a serra. Os mais aquinhoados fazem casa-praia-serra. O ir e vir simula novidade na mais estrita rotina. Esse grupo forma uma categoria à parte entre o viajante e o caseiro ou usa essa estratégia como um estranho placebo. Ao final, acaba-se acreditando no efeito desejado. O primeiro sinal da vontade de voltar para casa, entre os que retornam para fechar o ciclo, é o sítio. De repente, especialmente entre os criados em pequenas cidades interioranas, com casas, pátios enormes, árvores frondosas, jardins e hortas, surge a vontade incontrolável de ter um sítio. Os céticos garantem que sítio dá duas alegrias: quando compra e quando vende. Esses pertencem à categoria dos que morrem longe de casa sem se importar ou nasceram ou cresceram em apartamentos sem cheiro de terra.

Família – Um passo enorme no retorno à família atualmente, ainda mais para quem está chegando aos 60 anos de idade, é o WhatsApp. Chega antes do sítio e prepara para a aposentadoria. O homem moderno sonha em morrer trabalhando. Só se define pela profissão. Os europeus garantem que o ciclo laboral deve respeitar um fluxo etário: para que uns entrem, outros devem sair. Num país como o Brasil a maioria não pode sair por ter de ganhar a vida até morrer. Não sai, é mandada embora. Outra parte, não sabe o que fazer da existência fora do trabalho. Sem contar que a perda salarial é certa. Vai ficando.

      Mulheres estão mais preparadas do que homens para a aposentadoria? Não se trata de questão de gênero, mas de cultura. Há os nostálgicos e os quem vivem num presente perpétuo. Curioso é constatar que existe nostalgia entre os que perdem a memória lentamente. Ou que para muitos só resta a memória do passado. Vive-se mais agora. O que fazer do tempo futuro? Família, religião, política e esporte funcionam como instâncias de acolhimento. Em aeroportos não é incomum encontrar senhoras lépidas arrastando homens lentos. Elas querem ver o mundo. Eles sonham em voltar para casa. Elas planejam o embarque, eles só pensam no desembarque. Elas sentem o cheiro das rosas do Marrocos. Eles se embriagam com jasmins da infância. Caricaturas. Não existem homens e mulheres. Só existem pessoas.

      Podemos, contudo, formar conjuntos? Há os que adoram classificar gerações: X, Y, Z. Só conheço membros de gerações. O conservador Joseph de Maistre tinha sua maneira de ver as coisas: “A constituição dos jacobinos foi feita para o Homem. Ora, não existe tal Homem: ao longo da minha vida, vi franceses, ingleses, russos, etc. Como li Montesquieu, sei que se pode ser persa. Mas nunca vi um Homem – se ele existe, é sem o meu conhecimento”. Não se pode mais ser persa. Nem Homem. Somente homem. Um dia, quis-se a unidade humana. Depois, a pluralidade. Por fim, a diversidade. E agora? Retorno à identidade. Não sei em quantas categorias se dividem esses bípedes implumes, racionais, por vezes, falantes ou lacônicos, chamados de seres humanos. Sei que há os que, como elefantes, voltam para morrer em casa e os que não se importam de morrer em viagem. Seres tão estranhos.

 


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