Necropolítica

Necropolítica

Com a morte na ideologia

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      Há quem pense que conceitos só servem para envaidecer os agentes do mercado de ideias. As teorias existiriam apenas para negar ou distorcer os fatos. Certos conceitos, no entanto, parecem iluminar o mundo pelo simples fato de serem citados. Necropolítica é um conceito usado pelo camaronense Achile Mbembe. Alguém consegue pensar em termo melhor para falar do que estamos vivendo, sentindo ou temendo? Não quebrar as patentes das vacinas, como postula a Organização Mundial da Saúde, possibilitando a produção dos imunizantes por toda parte, entra nessa categoria. Vidas são perdidas por causa de outros conceitos: propriedade, contratos, regras do jogo, lucro, concorrência. Esses rótulos designam realidades muitos importantes, mas não inquestionáveis. A vida precisa estar acima delas. Parece evidente.

      Não tem sido. Necropolítica é relativizar a morte dos outros. Mbembe faz perguntas desconcertantes: “Que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial ao corpo ferido ou massacrado)? Como eles estão inscritos na ordem do poder?” Quando se tem de decidir quem vai morrer ou viver já se está no outro lado da política. Quando questões burocráticas atrasam o que pode salvar, por toda ordem de considerações, a necropolítica já se tornou dominante. O negacionismo é uma forma de necropolítica. Mmembe pensou a necropolítica em torno do racismo e do colonialismo. É aquilo que se tem praticado ao longo do tempo contra negros. A novidade agora é a necropolítica que mata brancos. Mesmo assim, as vítimas preferenciais são não brancas. Na necropolítica da pandemia pobres e negros continuam sofrendo mais.

      Somos regidos por um conceito essencial civilizatório, soberania, que, em certas circunstâncias, resume-se à “capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é”. Necropolítica é não demonstrar empatia permanente pelas vidas perdidas, minimizar o perigo, ignorar as advertências, difundir soluções falsas, não fornecer meios possíveis de proteção. Nem só autoridades praticam necropolítica. Pode-se ter, como vemos, um estado de necropolítica generalizada. Não usar máscara e promover aglomerações é pura necropolítica voluntária ou involuntária.

      De certo modo, a necropolítica concebe os humanos não como seres únicos, singulares, sagrados, invioláveis, mas como exemplares de espécie, substituíveis. Se somos muitos e equivalentes, a perda de certa quantidade não abalaria a reprodução e conservação do conjunto. A síntese popular sem conhecimento de causa dessa perspectiva é “vida que segue”. Uns ficam pelo caminho. A necropolítica é sempre cínica. Há escola desse negócio? Como alguém vira adepto dessa filosofia? É mais simples e mais complexo: tudo circula como um vírus. A lógica é essa, viral, exponencial, irrefletida, até certo ponto, consciente para alguns. As fake news, por exemplo, são a necropolítica da verdade. Toda fake news é dolosa, premeditada, qualificada ao último grau. Já demos o salto mortal. A luta pela vida tem nova dimensão.

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Hoje, 19 horas, conversa com o professor Sergius Gonzaga sobre os “livros de nossas vidas”. No facebook: CLH POA/GONZAGA SERGIUS.


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